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Lições da história: o dilema afegão

O “The Economist” publicou uma matéria que o Estadão replicou, ontem, sobre o dilema com que se confrontam os americanos sobre se devem, ou não, permanecer por mais tempo no Afeganistão.

É importante recordar que uma das promessas de campanha de Donald Trump à presidência dos EUA, em 2016, foi a retirada total das tropas americanas. Ele afirmava, então, que os Estados Unidos haviam cometido “um terrível erro ao se envolverem no Afeganistão”. Uma vez no poder, porém, D.T. autorizou a permanência e o incremento do efetivo das tropas. Como resultado, os Estados Unidos ainda sediam um contingente de cerca de 14.000 militares no solo afegão.

Vale recordar que a presença desse contingente, e dos de outros países ocidentais que ainda estão estacionados no Afeganistão, já data de dezembro de 2001, logo após o ataque ao “World Trade Center”. Foi muito maior – mais de cem mil, segundo alguns analistas – e no entanto, até agora não se alcançou nenhum resultado concreto: ao contrário, não somente ainda não foi possível levar as várias etnias locais a um entendimento, senão também a presença militar estrangeira acirrou a disputa de poder entre os vários grupos envolvidos na resistência, principalmente os talibãs e o ISIL/Estado Islâmico, e também o sentimento “nativista/religioso”. Cabe, a este propósito, recordar que o ISIL, de “franchise” dos talibãs tornou-se hoje seu figadal inimigo, a quem acusa de cooperação com os “invasores estrangeiros”.

Decorridas quase duas décadas de luta infrutífera, no ano passado os Estados Unidos decidiram mudar sua estratégia e iniciaram um diálogo direto, sem precedentes com os talibãs, em Doha, no Qatar. D.T. manifestou, na ocasião, uma vez mais seu desejo de encerrar as “guerras sem fim” e virar a página das custosas intervenções militares de seu país no exterior. As conversações informais entre os EUA e os talibãs já estão em sua nona rodada, e levaram o Secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, a mostrar-se “otimista” sobre o seu futuro.

O “Representante Especial dos Estados Unidos para a Reconciliação com o Afeganistão”, o afegão-americano Zalmay Khalilzad, chegou a afirmar no mês passado que ”we are at the threshold of an agreement that will reduce violence and open the door for Afghans to sit together to negotiate an honorable and sustainable peace and a unified, sovereign Afghanistan that does not threaten the United States, its allies, or any other country”. Khalilzad concentrou sua atuação em quatro objetivos inter-relacionados: 1) um calendário para a saída de todas as tropas estrangeiras atualmente no Afeganistão; 2) o compromisso dos talibãs de evitar que atos hostis sejam perpetrados contra as tropas americanas; 3) negociações diretas entre os talibãs e o governo afegão, que consideram “ilegítimo” e “fantoche” dos ocidentais; e 4) um cessar-fogo que abranja todo o país.

Subjaz à “pressa” de Washington em acelerar as conversações, de um lado, a complicada eleição presidencial afegã, programada para final deste mês, e, de outro, o início efetivo da campanha eleitoral para a Casa Branca. Caso exitosos, os entendimentos propiciariam a D.T. poder alegar ter cumprido sua promessa de campanha da primeira eleição. Este açodamento foi a razão, aliás, dos desentendimentos entre Donald Trump e o seu então Secretário de Defesa, John Bolton, que por ser contrário à “leniência” com que seu Chefe estava, a seu ver, levando as conversações com “terroristas”, pediu demissão do cargo.

Ainda que Washington esteja apressada em desengajar suas tropas, idealmente através de um acordo político com os talibãs, dificilmente os americanos conseguirão concretizar este intento, pelo menos nos curto e/ou médio prazos. Acontece que os talibãs não são o único grupo envolvido na resistência aos “forasteiros”. Vários outros opositores armados de outras diversas falanges teriam de ser envolvidos igualmente no processo. A fraqueza do governo afegão e as divisões políticas internas dariam ao talibã, para alguns analistas, vantagem em qualquer arranjo de partilha de poder, particularmente depois que os EUA e as forças aliadas deixassem o país. Mas é muito duvidoso que os talibãs, seja no poder ou como parceiro no poder, possam controlar os outros grupos de oposição armados, o mais importante dos quais o ramo Khorasan do Estado Islâmico/IS-K, ou mesmo angariar o apoio transversal da diversificada e multiétnica população. Tal tem sido o processo histórico no Afeganistão, sobretudo desde a luta contra os soviéticos.

Ou seja, uma equação de dificílima solução…

Prova disto é o recente atentado suicida cometido pela falange IS-K – que está empenhada em criar o dissenso e o caos – em um casamento em Cabul, matando mais de 60 pessoas e ferindo perto de 200. Este é um lembrete trágico da situação de insegurança que reina no país e corrobora a convicção de que “um acordo” com os talibãs, apenas, resultará em “nenhum acordo”, ou trégua, sequer.

Qual seria a solução, se é que há alguma?…

Há que se entender o que escapa aos ocidentais: o Afeganistão não funciona segundo a cabeça do Ocidente. Desde os seus primórdios ali tem imperado o sistema da “jirga”, ou seja, a assembleia dos anciãos, composta pelos líderes das diversas etnias que formam a sua população – pashtuns, tajiks, hazaras, uzbeks, aimaks, turcomanos, beluchis, pashai, nuristani, gujiar e árabes, etc…– todas orgulhosas de sua história e valores civilizacionais. Nenhuma delas, por menor que seja em números absolutos, aceitará o jugo de outra. Assim, somente o consenso entre elas propiciará uma – frágil e sempre negociada- estabilidade. É, na sua essência, o processo democrático mais autêntico…

E como fazer isto? ….estou seguro, pela minha experiência na região, que esta é a pergunta que terá de ser respondida pelos próprios afegãos, à maneira deles e sem ingerências.

Moral da história: é o Iraque que se reedita?… melhor teria sido não ter-se iniciado este triste capítulo da História…Quantas vidas perdidas em vão…

Sugiro aos amigos que leiam a matéria do “The Economist”/”Estadão”: Sobre este site

INTERNACIONAL.ESTADAO.COM.BR Os EUA e a difícil negociação com o Taleban no Afeganistão – Internacional – Estadão

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.