ISSN 2674-8053

A saga – ou quebra-cabeças – da Síria…

Donald Trump decidiu, em sua “grande e inigualável sabedoria” (sic), ordenar a retirada das tropas americanas do norte da Síria e encerrar o que qualificou de “uma guerra sem fim”. Com isto entregou a aliada “Forças Democráticas da Síria” (FDS), milícia curda que controla parte da fronteira entre a Síria e a Turquia e detém em cativeiro milhares de membros do Estado Islâmico junto com suas famílias, à sua própria sorte. Lembremo-nos de que os EUA e as FDS têm sido parceiros na luta contra o grupo extremista que hoje se encontra quase derrotado.

A decisão de D.T. desencadeou, internamente, uma série de reações do parlamento norte-americano. O seu confronto com os membros do Partido Democrata alcançou grande contundência quando num “briefing” para os membros da Câmara dos Representantes, na Casa Branca, no qual Trump buscou explicar sua decisão, os democratas, liderados pela Presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, abandonaram de forma tempestuosa a reunião, que se transformou, nas palavras dela, num “insulto-Fest”, quando notaram que o Presidente não tinha plano para lidar com o potencial “revival” do Estado Islâmico no Oriente Médio.

O líder dos democratas no Senado, Chuck Schumer, disse aos repórteres que Trump tinha chamado Pelosi de “político de terceira categoria”. Ele acrescentou que o encontro “não foi um diálogo, mas uma espécie de diatribe desagradável, que não focou os fatos”. Pelosi, de sua parte, acrescentou: “I pray for the president all the time … I think now we have to pray for his health – this was a very serious meltdown on the part of the president…”. E acrescentou: “the Democrats couldn’t continue in the meeting because he was just not relating to the reality of it”.

E o que está em “jogo”?

Os oito anos de guerra na Síria afetaram e modificaram profundamente a cartografia geopolítica do Oriente Médio. Neste contexto, a maioria dos analistas entende que os hábitos de D.T. de seguir seus instintos seja um erro grave ao aplicar fórmulas simplistas para lidar com as infinitas complexidades da região.

Com efeito, bastou uma semana para o mapa da guerra na Síria ser reformulado: ao abandonar seus aliados, os Estados Unidos desencadearam uma série de acontecimentos que ameaçam desestruturar o complicado – e frágil – “status quo” local, abrindo espaço para uma reformulação da geopolítica regional e criando um “leque de oportunidades” para o questionamento territorial de parte da Turquia; do governo do presidente sírio, Bashar al-Assad e seus aliados; dos “rebeldes” sírios; da Rússia; do Irã; além dos “fundamentalistas” do Estado Islâmico.

E qual é este “status quo”?

A retirada americana foi vista pela Turquia como a oportunidade ideal para tomar o controle da parte da sua fronteira com a Síria das mãos dos curdos, propósito que tem pretendido concretizar há muito tempo. É importante lembrar que há milênios estes últimos, que são hoje cerca de trinta milhões de pessoas, na maioria muçulmanos sunitas e falam uma língua própria, reclamam um território – um Estado – que compreenderia, em tese, partes da Turquia, Irã, Síria e Iraque.
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O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, declarou que seu alvo são as Forças Democráticas da Síria (FDS), aliadas dos rebeldes curdos de seu país. O plano dos turcos é controlar os dois lados da fronteira no nordeste da Síria e estabelecer uma “zona de segurança”, de cerca de 32 quilômetros, para onde Erdogan pretende mandar um milhão ou mais de refugiados sírios. Com este propósito, o exército turco invadiu a fronteira comum.Erdogan, de sua parte, se recusa a aceitar os “conselhos” – e as ameaças de retaliações econômicas – de D.T. para desistir de seus propósitos.

Os russos, por sua vez, que têm sido os aliados – e garantes – do Presidente Bashar al-Assad, vão ocupando o vazio deixado pela partida das tropas americanas e já começaram a patrulhar região do norte da Síria. Este movimento redesenha o equilíbrio de poder no Oriente Médio e sugere (indica…?) a perda de influência dos Estados Unidos, abrindo a oportunidade para que a Rússia se mostre como uma mediadora confiável para todos os envolvidos nas disputas. Não nos esqueçamos de que Moscou tem sido aliada de “primeira hora” do governo de al-Assad. É claro que, ademais das questões geoestratégicas propriamente ditas, os russos ambicionam garantir novos negócios e alavancar seus interesses estratégicos
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Os iranianos (xiitas), aliados dos russos, querem impedir a radicalização sunita na Síria, que os rebeldes (sunitas) representam, fragilizando a resistência do Presidente al-Assad (da corrente “alawita” do xiismo). E, sobretudo, impedir, de qualquer maneira, o renascimento dos radicais sunitas do Estado Islâmico, figadais inimigos dos xiitas
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Ou seja, repete-se a história: Afeganistão…, Iraque…, Primavera Árabe…, Líbia…, e agora Síria…; todos alvos da incapacidade do Ocidente de compreender as verdadeiras razões subterrâneas e milenares da principal controvérsia do Islã: o antagonismo sunita X xiita. Se duvidarem, desenterrem os amigos as raízes destas guerras: elas refletem, todas, os rancores (às vezes dissimulados) “atávicos” que dividem os muçulmanos. E o que tem D.T., e o Ocidente, em princípio, a ver com isto?…

Sugiro aos amigos que leiam a matéria do Estadão: Rússia ocupa vazio deixado pelos EUA e amplia presença no Oriente Médio – Internacional – Estadão

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.