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Polemizando… Joseph Nye e os “pés de barro” dos chineses…

Joseph Nye publicou no dia último dia 4/04, no site “Project Syndicate”, um artigo intitulado “Does China Have Feet of Clay?”, no qual elenca cinco grandes desafios para que o país de Xi Jinping realize o seu “China Dream” de assumir a liderança mundial em meados deste século
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O termo “China Dream”, que Xi, aliás, emprega amiúde em seus discursos, foi cunhado pelo Professor da Universidade Nacional de Defesa da China e coronel aposentado do Exército de Libertação Popular, Liu Mingfu, que logo no primeiro capítulo do seu livro “The China Dream”, afirma, de maneira peremptória, que “ …but what does it mean for China to become the world´s leading nation? First it means that China´s economy will lead the world. On that basis, it will make China the strongest country in the world. As China rises to the status of a great power in the 21st century, its ai mis nothing less than the top – to be the leader of the modern global economy”..
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Nye reconhece o prodigioso desempenho da economia da RPC nestas últimas quatro décadas, que a transformou no principal parceiro comercial para mais de cem países, o dobro dos Estados Unidos. Da mesma forma, a taxa anual de crescimento do seu PIB, ainda que desaquecida ultimamente, permanece mais do dobro do que a dos EUA. Entretanto, ele afirma que “é possível que Xi tenha pés de barro” e analisa quais seriam o “calcanhar de Aquiles” dos chineses.

O primeiro desafio. segundo ele, é o despreparo da economia para enfrentar os vários obstáculos criados pelo envelhecimento da população. É verdade. Não só por isto, mas também pelos efeitos nefastos da redução da taxa de natalidade decorrente da política de “um só filho por família”(retificada para dois filhos, recentemente), que pesará sobre os ombros das gerações futuras, que terão de arcar com os ônus de uma economia possivelmente desalinhada e uma sociedade envelhecida, sobretudo no que respeita ao mercado de trabalho.

O segundo ponto levantado por Nye é a necessidade – segundo ele – de a China mudar seu paradigma de desenvolvimento, ainda baseado nas exportações de manufaturas de pouco conteúdo tecnológico. A “guerra comercial” com os americanos seria um dos sintomas do “visível” esgotamento deste modelo, para ele. Acredito que esta afirmação deva ser matizada. Na verdade, a mudança de paradigma já está ocorrendo. O governo chinês vem desenvolvendo um plano para transformar a República Popular numa megapotência pós-industrial, até 2050. Para isto, lançou, em 2015, o plano “Made in China 2025”, focado em setores de tecnologia de ponta – farmacêutico, automotivo, aeroespacial, de semicondutores, T.I, robótica, entre outros -, em cuja direção estão sendo canalizados os trilhões de dólares das reservas de que dispõe. Complementarmente, a China está “terceirizando” o comércio das manufaturas de menor valor agregado para os países do sudeste da Ásia e da África. Bangladesh é, por exemplo, hoje o segundo maior exportador de vestiários do mundo.

No que respeita à proteção da propriedade intelectual, também citada por Nye, as empresas chinesas, na maioria estatais, têm adotado uma tática definida: adquirir firmas estrangeiras de alta tecnologia, europeias sobretudo, como a Pirelli, a Volvo, a Motorola, a MG Automobiles e a General Electric. Com isto os chineses avocam o direito de lhes transferir o “know how” das companhias que lhes pertencem. Mas não somente elas, senão também grandes marcas de renome internacional como a Cerruti, o Club Mediterranée, o InterMilan Footbal Club, o hotel Waldorf Astoria, o IronMan e o Rotary Club. E através desses “brands” reconhecidos, eles buscam ganhar o aval internacional para a qualidade de seu parque industrial. Achar, portanto, que a China ainda privilegia a industria tradicional é iludir-se quanto à percepção que os chineses acreditam ser o lugar deles na geoeconomia pós-moderna: uma superpotência hegemônica. Se conseguirão, ou não, é a pergunta de vários trilhões de dólares…

Os terceiro e quarto aspectos tocam fatores políticos. Segundo Nye, ultrapassado o período das reformas abrangentes de Deng Xiaoping que transformaram a RPC no país que é hoje, a nova etapa torna-se mais complexa porque demanda mudanças ainda impensáveis para o Partido Comunista Chinês. Entre elas, a independência do poder judiciário, maior controle sobre as empresas estatais – mastodontes incompetentes e corruptos- e mudanças no sistema do “hukou”, que é o registro dos cidadãos em seus locais de residência, obrigatório para se obter uma série de benefícios públicos: assistência médica e hospitalar, escola para os filhos, previdência social, etc. Este tem sido o sistema pelo qual o PCC busca evitar a proliferação do trabalho informal nos grandes centros urbanos e, consequentemente a 
migração interna que afeta o crescimento desenfreado deles; basta pensar que das dez cidades mais populosas do planeta, três – Xangai, Pequim e Guangzhou – estão na China.

Nye afirma também que Xi Jinping, pela maneira autocrática com que governa, reverteu as reformas políticas que buscavam a separação entre o Partido e o Estado. Para ele, a República Popular não rompeu com a sua tradição, milenar, do império. Ainda que a China tenha-se transformado numa sociedade de classe média urbana, sua população não conseguiu se desvencilhar do arraigado conceito de que o Partido Comunista Chinês é o imperador “da vez”, que somente “o partido pode salvar a China”, e que “as reformas aumentarão o monopólio do poder, pelo Partido” (sic/Nye).

Nye, para mim, olha para a China de uma ótica ocidentocêntrica, baseada em valores que são próprios aos ocidentais, mas que, a meu ver, não se aplicam a uma sociedade asiática, de longa história e conservadora, como é a chinesa. Os referenciais e os valores lá são outros… Explico-me: o PCC incorpora um dos princípios fundamentais da civilização sínica (com s), o “Mandato do Céu”, que nada mais é do que a aplicação dos valores confucionistas – respeito ao mestre, obediência aos mais velhos e à autoridade, por exemplo – ao meio social. Tal princípio data da dinastia Zhou ( 1046 – 771 a.C.). Seguindo seus ditames, a população delega aos seus líderes o direito de governá-la; entretanto, este mandato é condicionado a que eles sejam “virtuosos”, ou seja, que atendam aos seus anseios, caso contrário perderão o “mandato do Céu” e serão destituídos. A longa história da China está repleta destes episódios.

Ora, os chineses nunca viveram tão bem como atualmente, levando-se em consideração os valores que realmente lhes importam – melhor qualidade de vida, bons empregos, melhora no setor da saúde pública, etc. Ou seja, para eles o PCC detém o “Mandato do Céu”, ainda que para as sociedades ocidentais lhe falte um elemento fundamental: o sufrágio das liberdades individuais. Entretanto, para a grande massa popular, este fator não tem relevância (ainda), diante da afluência que estão vivenciando, nunca antes sequer imaginada… A ausência de democracia é, por enquanto, um aspecto pouco relevante. Ainda que “politicamente incorreto” para nós, os que vivemos na China podemos testemunhar tal conclusão. Até quando continuará assim? É a pergunta que não quer se calar…

O último fator mencionado por Nye é o do reconhecimento da China no cenário internacional. Segundo ele, os países democráticos têm barreiras para aceitá-la tal como ela é. A pergunta insidiosa que se coloca é se será por esta razão, ou, no fundo, pela ameaça que uma China hegemônica, com parâmetros civilizacionais próprios, representa? Certamente os americanos estão preocupados com a emergência do gigante asiático; os europeus ainda não se posicionaram (à exceção da Itália, que já aderiu ao plano “One Belt, One Road”, que Xi lhe apresentou para restabelecer a antiga Rota da Seda, unindo a Ásia à Europa e à África).

Embora os valores morais sejam fundamentais para o relacionamento entre as nações, é também importante uma visão equilibrada das características das diferentes culturas que habitam o planeta. O pior que pode acontecer – disto a minha vivência de quase dezesseis anos em onze países asiáticos me convenceu – é impormos parâmetros civilizatórios aos que não têm os mesmos referenciais que nós: as guerras do Afeganistão, do Iraque, da Líbia, da Síria e os milhares de refugiados que perambulam pelo mundo, que os atestem. Enquanto isto, o ciclo das civilizações segue o seu rumo: o “Brexit” do ex-império Britânico que o diga…

Então, Professor Joseph Nye, a China é um “gigante com pés de barro”, ou …?

Sugiro aos amigos que leiam o artigo do “Project Syndicate”:Does China Have Feet of Clay? | by Joseph S. Nye No one knows what China’s future holds, and there is a long history of faulty

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.