A mais recente façanha no longo “imbroglio” dos Estados Unidos com o Oriente Médio islâmico acaba de acontecer através de um “drone”- o “MQ-9 Reaper -, lançado, por ordem direta de Donald Trump (D.T.), do solo americano, em resposta à quase invasão da Embaixada americana em Bagdá, motivo imediato alegado. Com isto, os EUA alcançaram a “proeza” de matar o general iraniano Qassem Suleimani, quando ele desembarcava no aeroporto de Bagdá. E com ele outras importantes personalidades do estamento militar iraniano e iraquiano.
Como todos nós estamos informados, Suleimani não era um general qualquer, mas o líder da “misteriosa” Força Quds, falange de elite da Guarda Revolucionária do Irã, criada ainda em 1980 – portanto, apenas um ano após a chegada do clero xiita ao poder em Teerã – e vinculada diretamente ao mais alto nível da liderança religiosa do país. Considerado a segunda maior autoridade do Irã, Suleimani respondia diretamente ao Líder Supremo, o Aiatolá Ali Khamenei, de quem era muito próximo. Os Quds não são, portanto, um grupo qualquer, mas voluntários – homens quase todos (embora exista agora um número de mulheres combatentes) – que mantêm colaboração com a rede dos radicais xiitas, como o Hezbollah, o Hamas, e as milícias xiitas do Iraque, da Síria e do Afeganistão: ou seja, a “internacional xiita”.
E quais são a raiz e a consequência disto (que os americanos aparentemente jamais entenderam)? A raiz está na cissiparidade e na disputa entre as correntes sunitas e xiitas no seio do Islã, desde os idos da morte de Maomé, em 632 d.C., e do vácuo que se criou sobre a sua herança político-religiosa.
“Bizantinice acadêmica”, ou a uma explicação para tudo o que aconteceu – e está acontecendo – no mundo islâmico desde então?…
Para melhor entender este jogo, vamos ao tabuleiro do Islã: os sunitas são a maioria em todo o mundo. Eles constituem entre 85 e 90% da população muçulmana do planeta, predominando no sudeste e sul da Ásia, China, África e na maioria do Oriente Médio. Os xiitas, por sua vez, representam apenas 10–15% dos muçulmanos. Entretanto, eles são maioria absoluta no Irã (cerca de 95% da população), no Iraque (cerca de 75%), no Azerbaijão (cerca de 90%) e no Bahrain (cerca de 70%). Contam, igualmente com significativo número de fieis na Índia, Paquistão, Afeganistão e até na própria Arábia Saudita. Ou seja, o foco do xiismo está na região Irã-Iraque, porém se ramifica por todo Oriente (e pelo planeta). Estas duas correntes são inimigas figadais camufladas pela retórica da irmandade da fé.
A disputa pelo poder no mundo muçulmano se faz, portanto, entre os dois grandes líderes das duas correntes: o Irã e a Arábia Saudita, pátria de Meca, “guardiã” da Caaba e aliada dos americanos. Ambos arquitetam as estratégias da luta pelos espaços da fé e da sua “internacionalização”. Isto explica o que está ocorrendo em todo o Oriente Médio. Isto explica, também, o antagonismo e o enfrentamento dos xiitas, tanto no Iraque quanto no Afeganistão, contra os talebans e o Estado Islâmico – fundamentalistas sunitas –, assim como em várias partes do universo islâmico. E explica, ainda, as missões de Suleimani para arquitetar a estratégia da militância xiita com o Hezbollah e o Hamas e em toda a região. Isto se refere tanto às estratégias contra os sunitas quanto contra os “invasores ocidentais”. Daí o “secretismo” da sua presença ubíqua em todos os acontecimentos no Oriente Médio, desde a Guerra do Afeganistão à invasão da Embaixada americana em Bagdá duas semanas atrás. Ele esteve presente em todas elas… Explica, igualmente, o seu excessivo e discreto poder.
Mas quão perigoso era o homem, e as suas teses? Vejamos:
Partamos de uma visão macrocósmica: o Irã não é um país qualquer, mas uma das civilizações mais antigas e sofisticadas do mundo. Ainda que hoje muçulmano, suas raízes remontam à antiga Pérsia. Isto tem, sim, importância no substrato cultural de sua população, orgulhosa de sua História e das suas tradições, pré ou pós-islâmicas. Não é, com certeza, uma “republiqueta” qualquer, ainda que empobrecido atualmente pelas sanções impostas pelos americanos sobre as exportações de petróleo, sua principal fonte de recursos externos, como sabemos. A conturbada vizinhança imediata, sobretudo Israel, induziu-o a desenvolver – “à tort ou à raison” – a pesquisa nuclear já desde a década de 1950, com a ajuda dos americanos; aliás, dentro do programa “Atoms for Peace”… Faca de dois gumes, “aggiornou” o seu uso para fins “normais”, mas ao mesmo tempo capacitou o país a desenvolver um artefato, este sim de “destruição em massa”, se é que já não – ou quase – fez… para se “defender” do cerco sunita e de Israel na região.
Mas qual poderia ser a sua resposta – “tenebrosa” (?) – para D.T. e os americanos, por esta agressão “infame”?…
O mundo inteiro está em suspense sobre o que poderá acontecer a partir de agora. Preocupa a todos as possíveis reações de Teerã contra o que considera o achincalhamento da sua soberania e da sua fé: as manifestações no Irã e no Iraque estão ganhando força, tanto pró quanto contra os seus governos. Fala-se em “guerra”. D.T. , em mais uma das suas bravatas, afirmou que “o Irã jamais ganhou uma guerra”…Ora, os Estados Unidos tampouco ganharam, pelo menos no Oriente Médio e na África. Haja vista à invasão do Afeganistão, em 2001; à do Iraque, em 2003; à da Líbia, em 2011; e, mais recentemente, à da Síria, em 2014. Todas derrubaram, à exceção da Síria, governos que mantinham – pelo mal ou pelo bem – o controle do país, e instauraram o caos: o Afeganistão e o Iraque encontram-se ingovernáveis, sob administrações “ilegítimas”; a Líbia, igualmente ingovernável, está dividida entre duas lideranças que reclamam seu direito soberano; a Síria encontra-se “balcanizada”, à mercê do apoio da Rússia, e ameaçada de “perder” a região curda…
Foi por esta razão, aliás, que Barack Obama buscou um acordo nuclear com os iranianos, que Trump logo denunciou… e criticou acerbamente. Acontece que a Washington de D.T. tem uma noção “simplista” das civilizações islâmicas. Fruto de sua história linear e recente comparada à do Oriente, os americanos enxergam o mundo em “branco e preto”, sob a ideologia do “American Way of Life” e dos seus valores positivistas cristãos, que pretendem inculcar “erga omnes”. Ora, o Oriente nunca viu a História – e suas lições – desta perspectiva. Ela, a sua trajetória e os valores que cristalizou, é demasiado complexa para a compreensão dos americanos (ousaria dizer, para o centro do Ocidente…).
Assim, não seria uma “guerra” ostensiva, a qual fatalmente os iranianos perderiam, que daria uma resposta ao “martírio” de Suleimani, mas, talvez, um plano de ações difusas que criaria ameaças em nível mundial, pondo o planeta em suspense. Tudo está em aberto, neste momento. Como comentou o analista Michael Doran, do “The New York Times”, “a morte do General é um abalo sísmico no Oriente Médio”…
Ou a pior opção: a ameaça nuclear…
Sugiro aos amigos que leiam a matéria do Estadão, abaixo:
INTERNACIONAL.ESTADAO.COM.BR Análise: Morte de general é abalo sísmico no Oriente Médio – Internacional – Estadão