ISSN 2674-8053

Donald Trump e a questão iraniana: beco sem saída?

A mais recente façanha no longo “imbroglio” dos Estados Unidos com o Oriente Médio islâmico acaba de acontecer através de um “drone”- o “MQ-9 Reaper -, lançado, por ordem direta de Donald Trump (D.T.), do solo americano, em resposta à quase invasão da Embaixada americana em Bagdá, motivo imediato alegado. Com isto, os EUA alcançaram a “proeza” de matar o general iraniano Qassem Suleimani, quando ele desembarcava no aeroporto de Bagdá. E com ele outras importantes personalidades do estamento militar iraniano e iraquiano.

Como todos nós estamos informados, Suleimani não era um general qualquer, mas o líder da “misteriosa” Força Quds, falange de elite da Guarda Revolucionária do Irã, criada ainda em 1980 – portanto, apenas um ano após a chegada do clero xiita ao poder em Teerã – e vinculada diretamente ao mais alto nível da liderança religiosa do país. Considerado a segunda maior autoridade do Irã, Suleimani respondia diretamente ao Líder Supremo, o Aiatolá Ali Khamenei, de quem era muito próximo. Os Quds não são, portanto, um grupo qualquer, mas voluntários – homens quase todos (embora exista agora um número de mulheres combatentes) – que mantêm colaboração com a rede dos radicais xiitas, como o Hezbollah, o Hamas, e as milícias xiitas do Iraque, da Síria e do Afeganistão: ou seja, a “internacional xiita”.

E quais são a raiz e a consequência disto (que os americanos aparentemente jamais entenderam)? A raiz está na cissiparidade e na disputa entre as correntes sunitas e xiitas no seio do Islã, desde os idos da morte de Maomé, em 632 d.C., e do vácuo que se criou sobre a sua herança político-religiosa.

“Bizantinice acadêmica”, ou a uma explicação para tudo o que aconteceu – e está acontecendo – no mundo islâmico desde então?…

Para melhor entender este jogo, vamos ao tabuleiro do Islã: os sunitas são a maioria em todo o mundo. Eles constituem entre 85 e 90% da população muçulmana do planeta, predominando no sudeste e sul da Ásia, China, África e na maioria do Oriente Médio. Os xiitas, por sua vez, representam apenas 10–15% dos muçulmanos. Entretanto, eles são maioria absoluta no Irã (cerca de 95% da população), no Iraque (cerca de 75%), no Azerbaijão (cerca de 90%) e no Bahrain (cerca de 70%). Contam, igualmente com significativo número de fieis na Índia, Paquistão, Afeganistão e até na própria Arábia Saudita. Ou seja, o foco do xiismo está na região Irã-Iraque, porém se ramifica por todo Oriente (e pelo planeta). Estas duas correntes são inimigas figadais camufladas pela retórica da irmandade da fé.

A disputa pelo poder no mundo muçulmano se faz, portanto, entre os dois grandes líderes das duas correntes: o Irã e a Arábia Saudita, pátria de Meca, “guardiã” da Caaba e aliada dos americanos. Ambos arquitetam as estratégias da luta pelos espaços da fé e da sua “internacionalização”. Isto explica o que está ocorrendo em todo o Oriente Médio. Isto explica, também, o antagonismo e o enfrentamento dos xiitas, tanto no Iraque quanto no Afeganistão, contra os talebans e o Estado Islâmico – fundamentalistas sunitas –, assim como em várias partes do universo islâmico. E explica, ainda, as missões de Suleimani para arquitetar a estratégia da militância xiita com o Hezbollah e o Hamas e em toda a região. Isto se refere tanto às estratégias contra os sunitas quanto contra os “invasores ocidentais”. Daí o “secretismo” da sua presença ubíqua em todos os acontecimentos no Oriente Médio, desde a Guerra do Afeganistão à invasão da Embaixada americana em Bagdá duas semanas atrás. Ele esteve presente em todas elas… Explica, igualmente, o seu excessivo e discreto poder.

Mas quão perigoso era o homem, e as suas teses? Vejamos:

Partamos de uma visão macrocósmica: o Irã não é um país qualquer, mas uma das civilizações mais antigas e sofisticadas do mundo. Ainda que hoje muçulmano, suas raízes remontam à antiga Pérsia. Isto tem, sim, importância no substrato cultural de sua população, orgulhosa de sua História e das suas tradições, pré ou pós-islâmicas. Não é, com certeza, uma “republiqueta” qualquer, ainda que empobrecido atualmente pelas sanções impostas pelos americanos sobre as exportações de petróleo, sua principal fonte de recursos externos, como sabemos. A conturbada vizinhança imediata, sobretudo Israel, induziu-o a desenvolver – “à tort ou à raison” – a pesquisa nuclear já desde a década de 1950, com a ajuda dos americanos; aliás, dentro do programa “Atoms for Peace”… Faca de dois gumes, “aggiornou” o seu uso para fins “normais”, mas ao mesmo tempo capacitou o país a desenvolver um artefato, este sim de “destruição em massa”, se é que já não – ou quase – fez… para se “defender” do cerco sunita e de Israel na região.

Mas qual poderia ser a sua resposta – “tenebrosa” (?) – para D.T. e os americanos, por esta agressão “infame”?…

O mundo inteiro está em suspense sobre o que poderá acontecer a partir de agora. Preocupa a todos as possíveis reações de Teerã contra o que considera o achincalhamento da sua soberania e da sua fé: as manifestações no Irã e no Iraque estão ganhando força, tanto pró quanto contra os seus governos. Fala-se em “guerra”. D.T. , em mais uma das suas bravatas, afirmou que “o Irã jamais ganhou uma guerra”…Ora, os Estados Unidos tampouco ganharam, pelo menos no Oriente Médio e na África. Haja vista à invasão do Afeganistão, em 2001; à do Iraque, em 2003; à da Líbia, em 2011; e, mais recentemente, à da Síria, em 2014. Todas derrubaram, à exceção da Síria, governos que mantinham – pelo mal ou pelo bem – o controle do país, e instauraram o caos: o Afeganistão e o Iraque encontram-se ingovernáveis, sob administrações “ilegítimas”; a Líbia, igualmente ingovernável, está dividida entre duas lideranças que reclamam seu direito soberano; a Síria encontra-se “balcanizada”, à mercê do apoio da Rússia, e ameaçada de “perder” a região curda…

Foi por esta razão, aliás, que Barack Obama buscou um acordo nuclear com os iranianos, que Trump logo denunciou… e criticou acerbamente. Acontece que a Washington de D.T. tem uma noção “simplista” das civilizações islâmicas. Fruto de sua história linear e recente comparada à do Oriente, os americanos enxergam o mundo em “branco e preto”, sob a ideologia do “American Way of Life” e dos seus valores positivistas cristãos, que pretendem inculcar “erga omnes”. Ora, o Oriente nunca viu a História – e suas lições – desta perspectiva. Ela, a sua trajetória e os valores que cristalizou, é demasiado complexa para a compreensão dos americanos (ousaria dizer, para o centro do Ocidente…).

Assim, não seria uma “guerra” ostensiva, a qual fatalmente os iranianos perderiam, que daria uma resposta ao “martírio” de Suleimani, mas, talvez, um plano de ações difusas que criaria ameaças em nível mundial, pondo o planeta em suspense. Tudo está em aberto, neste momento. Como comentou o analista Michael Doran, do “The New York Times”, “a morte do General é um abalo sísmico no Oriente Médio”…

Ou a pior opção: a ameaça nuclear…

Sugiro aos amigos que leiam a matéria do Estadão, abaixo:

INTERNACIONAL.ESTADAO.COM.BR Análise: Morte de general é abalo sísmico no Oriente Médio – Internacional – Estadão

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.