ISSN 2674-8053

E a onda levou

O dia de ontem consistiu em um marco histórico na cinematografia: o filme “Parasite”, sul-coreano, foi o primeiro longa-metragem em “língua estrangeira” (leia-se: não em inglês) a vencer o prêmio de Melhor Filme da Academia. Em termos simples, assistimos à crista de uma onda cultural que vem paulatinamente cobrindo o mundo atingir seu nível mais alto.

Certamente, os jornalistas chineses que cunharam, nos anos 90, o neologismo 韩流 (“hánliú”; em coreano, “hallyu”), “onda coreana”, para referir-se à larga difusão de produtos coreanos em seu país não imaginavam as proporções que o fenômeno que observavam tomaria. Aquilo que começou como uma série de políticas culturais “protecionistas” da Coreia do Sul logo se traduziria, em outros países asiáticos, em uma crescente audiência pelo entretenimento sul-coreano. Sua nova indústria de cinema se erguia e ganhava renome; grupos seminais do K-pop, como H.O.T. e Shinhwa, iniciavam a colecionar fãs e shows lotados de Pequim a Taipei; os primeiros seriados, hoje mais conhecidos como K-dramas, começavam a estrear e consolidar-se como clássicos da TV asiática. O Extremo Oriente assistia, não muito silenciosamente e em conformidade nem sempre espontânea, à gradativa e estrondosa incipiência da cultura sul-coreana em sua indústria de entretenimento. Em uma situação de “moda” já estabelecida, boybands como DBSK e Super Junior alçavam-se à posição de “reis da Ásia” (não à toa, DBSK é uma sigla para “Deuses Ascendentes do Oriente”): da Tailândia ao Japão, já era comum ouvir e ver Coreia do Sul — uma conjuntura que não foi verdade no Ocidente até 2012.

Em 15 de julho daquele ano, o meio que era popular em comunidades ocidentais apenas de jovens “párias” aficionados por outputs da subcultura asiática como seriados, histórias em quadrinhos e música começou a ser rompido, até explodir repentina e descontroladamente. O single “Gangnam Style”, do artista PSY, foi lançado e logo tornou-se um fenômeno musical sem precedentes, que estourou até o algoritmo de visualizações de vídeos no YouTube. De crianças a idosos, do Brasil até a Rússia, cantava-se o refrão sobre o rapaz que se autopromove à sua garota ideal argumentando ter os trejeitos e estilo de um dos bairros mais privilegiados de Seul. “Oppan Gangnam Style!”, gritavam e dançavam todos, acompanhados pelo videoclipe e a coreografia cômica, fazendo uma inadvertida referência ao sistema de honoríficos da sociedade sul-coreana e à zona descolada e rica da capital da República dos Han. A Coreia do Sul foi, de repente, introduzida a todos, desde aqueles que daí se aproximaram de tão distinta e longínqua cultura fascinante até às populações mais tradicionais que mal haviam ouvido falar desse país asiático e insistiam em afirmar que nada daquilo se diferenciava dos japoneses em qualquer coisa.

Desde então, estabeleceu-se um status quo, presente mas nem sempre claro aos mais distantes e, principalmente, preconceituosos, em que a cultura pop coreana reúne grupos de afeiçoados. Música, beleza, seriados, filmes, histórias em quadrinhos enriquecrm e elevam o legado e a auto-estima daquele país que, há poucas décadas, estava destruído por gerações de invasões e guerras. Cinéfilos assistiram e aplaudiram a Old Boy (2003); especialistas em beleza e cuidado da pele curvaram-se à rotina do skincare coreano; adolescentes se emocionaram com novos ídolos que, agora, não carregam os traços do loirinho de olhos azuis musculoso e bronzeado em algum filme de Hollywood, e sim do “oppa” magro e pálido, de cabelo liso e colorido, olhos pequenos e finos, dançando com maquiagem no rosto em um estádio lotado do Oriente. 

Chegamos ao ponto em que eu posso tranquilamente desafiar qualquer um que ande em São Paulo a me dizer que nunca viu inscrições em hangul na camiseta de alguma k-popper ou o rosto de algum desses “japoneses afeminados” (infeliz julgamento ainda comum) em uma banca de jornal. Mais do que isso, chegamos ao ponto em que um produto da indústria cultural da Coreia do Sul levou a mais desejada estatueta dourada na noite mais importante do cinema no mundo. 

Na verdade, reflito eu, o fato é que, a partir de agora, o termo “hallyu” não mais serve. A onda a que me refiro no título do texto não é mais o termo apropriado; assim o fosse, não teria energia o suficiente para levar ao outro lado do planeta o maior prêmio da cinematografia mundial. Disto são capazes apenas tsunamis.”

Julia Machado Gebara
bacharelanda em Relações Internacionais pela Escola Superior de Propaganda e Marketing em São Paulo. Natural da Baixada Santista, nutre desde a infância grande interesse por cultura e línguas estrangeiras. Encontra entre seus focos de atenção os estudos europeus e asiáticos, com ênfase em movimentos culturais.