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A Pax Americana e os talebans

Após meses de intensas e por vezes dramáticas negociações em Doha, no Qatar, as autoridades americanas e os representantes dos Talebans assinaram no sábado passado, um acordo que visa acabar com a guerra mais longa da história militar dos Estados Unidos, viabilizando a retirada gradual, dentro de treze meses, de suas tropas e das dos demais países-membros da OTAN, do Afeganistão. Conforme se recorda, elas invadiram o país em 07 de outubro de 2001, na esteira dos ataques da Al Qaeda ao “World Trade Center”, em 11 de setembro daquele ano.

Num primeiro estágio, o acordo viabilizará a libertação e a troca de seis mil prisioneiros, nos próximos 135 dias, no que é considerado como “a meaningful reduction of violence”. A elas seguirão as negociações entre as próprias facções afegãs, que devem começar em 10 de março na capital norueguesa de Oslo.

Este acordo, firmado na presença de líderes do Paquistão, Catar, Turquia, Índia, Indonésia, Uzbequistão e Tajiquistão, foi negociado exaustivamente pelo enviado norte-americano, Embaixador Zalmay Khalizad, e pelo líder taleban, Mullah Abdul Ghani Baradar, sem a participação do governo afegão (fato muito significativo). Khalilzad, a propósito, tem raízes e relações profundas com o Afeganistão, onde nasceu e cresceu, em Cabul, no seio de um clã prestigioso que tem interesses extensos – nem sempre muito “ortodoxos” – com algumas ramificações dos talebans, principalmente com a etnia “pashtun”, predominante no país. A este propósito, transpirou na imprensa que…”an investigative report by a Russian newspaper said that a deal under which Khalilzad’s family would get several mineral deposits was discussed on the sidelines of the US-Taliban peace negotiations”.

Isto é possível?

O presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, que não participou do processo, discorda publicamente deste cronograma acelerado. Ele afirmou que a libertação de qualquer prisioneiro deverá ser decisão do seu governo, e que ele não estava pronto a fazê-lo até que se desbloqueiem as discussões internas com o seu Primeiro-Ministro, e principal oponente na cena política, Abdullah Abdullah,e seu grupo sobre o compartilhamento do poder no Afeganistão, agendadas para a próxima semana. Conforme se sabe, os talebans consideram o governo instalado em Cabul “ilegítimo” e “fantoche do Ocidente”. Aí reside o “imbróglio”, e os comentários de Ghani revelam o primeiro obstáculo para a implementação do acordo, pois os EUA já afirmaram que a retirada total das suas tropas está vinculada à concretização do compromisso de paz concluído com os Talebans e não ao progresso das negociações internas entre as várias facções étnico-políticas da população. Ou seja, concluído o acordo com o taleban, os Estados Unidos se sentiriam desvinculados do “problema afegão”.

Para melhor entender esta situação, devemos reconhecer que o caos político e militar reinante no Afeganistão está umbilicalmente vinculado às dinâmicas social e política próprias à história do país. Na realidade, estes conflitos são parte de uma problemática muito mais ampla e comum a muitos Estados e sociedades pós-coloniais. A situação atual só pode ser entendida focando-se nas tentativas fracassadas de construção de um Estado-Nação no contexto da herança insidiosa da manipulação estrangeira e das guerras por procuração que deram origem a formas particulares da divisão étnica do país.

Pode parecer “bizantinice acadêmica”, mas não é:

A herança, ou sequer existência, de um nacionalismo pós-colonial no Afeganistão levanta muitas questões. A principal delas é o conflito entre as várias – arraigadas e orgulhosas – etnias que compõem a população, o que tem obstaculizado, até agora, a construção de uma ideia de Nação. Com esta singularidade, e o consequente conceito difuso de nacionalismo e patriotismo, faz mais sentido buscar-se uma solução no âmbito étnico-tribal. Com efeito, a História afegã ensina que qualquer acordo deverá ser encontrado no contexto da “jirga”, ou seja a assembleia dos líderes tribais, visto que nenhuma etnia aceitará a supremacia de outra, ainda que a composição da malha étnica beneficie numericamente os “pashtuns” sunitas. Ainda assim, parece duvidoso que estes sejam capazes de controlar os outros grupos armados de oposição ou arregimentar apoio suficiente de uma seção transversal da população diversificada do Afeganistão.

Então, qual seria a motivação – ou consequência prática – deste acordo?

Ele atende sobretudo aos interesses de D.T. que, em plena campanha eleitoral, necessita desesperadamente desembaraçar os Estados Unidos de uma guerra aparentemente invencível. Caso isto aconteça, ele terá cumprido sua promessa de campanha de “trazer as tropas de volta para casa”; melhor ainda se for por meio de um acordo político com os talebans. Por esta razão, o documento é visto como uma oportunidade histórica para liberar os Estados Unidos do Afeganistão. Entretanto, esta alardeada “vitória” pode se desfazer rapidamente, sobretudo se o Taleban não cumprir a promessa de não lançar ataques terroristas. Por precaução, D.T. afirmou que o Taleban é “um grupo cansado da guerra” e acrescentou achar que “eles levam a sério o acordo que assinaram”. Entretanto, alertou que, “se coisas ruins acontecerem, voltaremos com todo o poder de fogo militar”.

As negociações entre facções políticas afegãs e o rival Taleban são ainda mais complexas, e estão longe, aparentemente, de chegar a bom termo nos curto e médio prazos. Mais grave ainda, o vácuo militar deixado pelos americanos pode abrir espaço para a reemergência do Estado Islâmico, inimigo figadal dos tabelans, por ora disperso mas sempre pronto para se reviver, conforme nota-se por todo o mundo.

Em definitivo, será que os talebans conseguirão manter sua promessa e garantir a paz no Afeganistão, ou estará a região uma vez mais caindo num engodo e prestes a reviver o Iraque, a Síria, etc…?

“À suivre…”

Sugiro aos amigos que leiam a matéria do site “Project Syndicate”:US President Donald Trump desperately wants to disentangle America from a seemingly unwinnable war in Afghanistan, preferably through a political settlement with the Taliban. But it is doubtful that the Taliban would be able to control other armed opposition groups or enlist the support of a cross-s…PROJECT-SYNDICATE.ORGIs Peace with the Taliban Possible? | by Amin SaikalUS President Donald Trump desperately wants to disentangle America from a seemingly unwinnable war in Afghanistan, preferably through a political settlement with the Taliban. But it is doubtful that the Taliban would be able to control other armed opposition groups or enlist the support of a cross-s…

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.