ISSN 2674-8053

The China Dream – Polemizando II

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A leitura de uma pertinente matéria do Estadão de hoje (1/5/2020)– “Crise leva China a exercer agressiva “diplomacia sanitária” e Ocidente reage” – provoca uma reflexão oportuna sobre os momentos traumáticos que estamos vivendo e os cenários que se descortinam para o planeta depois que a tempestade amainar. A matéria questiona como será o mundo pós-pandemia. Nela, o Professor Oliver Stuenkel afirma que “após essa crise, a globalização será muito mais marcada por questões geopolíticas, diferentemente dos anos 90, marcados por questões econômicas, com ganhos de eficiência e escala. A economia global está mudando e a China precisa se preparar para um mundo mais hostil”. Hostil com relação a ela, sobretudo, pelo que entendi.

Por quê?

Vamos por partes e retornemos ao planeta “pré-COVID 19”. Qual era o papel que a RPC estava avocando neste mutante século XXI? Para entender, vamos nos remeter ao “livro de cabeceira” já há algum tempo do Presidente da RPC, Xi Jinping: “The China Dream” (中国梦 / Zhōngguó mèng) , Great Power Thinking and Strategic Posture in the Post-American Era”, de autoria do coronel aposentado do Exército Popular de Liberação e professor a Universidade Nacional de Defesa da China, Liu Mingfu. Xi menciona com frequência esta obra nos seus discursos públicos. Quase como um mantra…

E qual é a importância deste livro e do fato de ele ser mencionado amiúde pelo mandatário chinês?

Vejamos. Logo no Capítulo I, Liu afirma que “it has been China´s dream for a century to become the world´s leading nation….but what does it mean for China to become the world´s leading nation? First, it means that China´s economy will lead the world. On that basis, it will make China the strongest country in the world. As China rises to the status of a great power in the 21st century, its aim is nothing less than the top – to be the leader of the world´s global economy” /
(tradução: Tem sido o sonho da China há um século tornar –se a nação líder do mundo….mas o que significa para a China se tornar a nação líder do mundo? Primeiro, significa que a economia da China vai liderar o mundo. Com base nisto, a China tornar-se á o país mais poderoso do mundo. À medida que a China ascende ao status da grande potência no século XXI, seu objetivo é nada menos do que o topo – ser o líder da economia mundial”)…

Na minha postagem sobre a “questão chinesa” – “BRASIL E CHINA: ENCONTROS E DESENCONTROS” – houve quem manifestasse uma salutar e muito compreensível preocupação com este cenário, sobre o qual não temos nenhuma reflexão aprofundada, muito menos conhecimento, e menor interferência, ainda. A China tem, sim, um projeto hegemônico, e é claro que esta ambição assusta. E muito..

Mas, os que convivem com a história das relações internacionais sabem que ela não está agindo diferentemente da Europa colonialista do século XIX; do British Raj; da União Soviética do século XX; e dos Estados Unidos hegemon ao longo destes últimos longos tempos. Seja pelo que for, a avidez por supremacia faz parte do DNA das civilizações: Egito, Grécia, Roma, Espanha, Portugal, Inglaterra, Alemanha nazista, URSS e uma plêiade de impérios, territoriais ou “ideológicos” – mongol, mogul, japonês, britânico, espanhol, etc…completam (?) uma lista enorme, que distorce as raízes das civilizações dos territórios que ocupam, ao lhes impor conceitos “bastardos”, desfigurando o caráter da nação. Os milhares de refugiados que não encontram abrigo em nenhum lugar do mundo são as trágicas testemunhas…

Mas com estes atores, nós, brasileiros, já estamos acostumados desde o nosso descobrimento… Eles fazem parte da biografia do Ocidente central, ao qual nos vinculamos e cujos valores subscrevemos (?), ainda que este Ocidente revele crescente anacronismo no planeta 5G. E é neste cenário que o protagonismo dos chineses no combate ao novo corona vírus tem sido visto como “eficiente”: não só a China, o primeiro foco da pandemia – e que no início escamoteou esta realidade , controlou rapidamente a doença, ainda que através de medidas consideradas “ditatoriais”, senão também produz a quase totalidade dos instrumentos, testes e apetrechos necessários para domar a epidemia planetária.

Isto tem sido visto como uma indesejável subordinação tecnológica do Ocidente a ela, que virou “alvo de contestação não só de líderes conservadores, como o presidente americano, Donald Trump, mas também de moderados, como o francês Emmanuel Macron e a Chanceler alemã, Angela Merkel”, justamente “no momento em que Pequim aprofunda a chamada “rota da seda sanitária”, expressão de sua “diplomacia das máscaras e respiradores”, produtos essenciais para o combate à pandemia e os quais têm no país o maior produtor mundial”, afirma a matéria do Marcelo Godoy.

Ou seja, a pandemia passou também a fazer parte da disputa pela hegemonia do poder mundial. D.T., que no início havia manifestado descrédito, teve que se curvar à horrível realidade e tomar medidas de isolamento, sobretudo, que no início renegava.

A China mudou radicalmente desde quando lá vivi, em 1994/7. Naquela época os chineses se consideravam um país pobre, com a política da erradicação da fome e da pobreza como ponto cardeal das ações governamentais. A China de Xi Jinping é totalmente distinta. Cada vez mais afluente, ela persegue a liderança mundial – de forma “arrogante”, para muitos – como seu ponto cardeal, até para apagar da memória as vicissitudes que sofreu no século XIX, o “Século das Humilhações”. E a questão da honra- pessoal, ou nacional- para uma sociedade confucionista como é a chinesa – o “mianze” – é inegociável.

Ela tudo fará para chegar lá, através de iniciativas ambiciosas como o “Belt and Road Initiative” e o projeto “Made in China 2025” – que identificou dez setores-chave com vistas a aumentar em 70% o conteúdo doméstico nos seus produtos até 2025. O objetivo final de Pequim é reduzir a dependência da tecnologia estrangeira e promover os fabricantes chineses de alta tecnologia no mercado global.

Diante destes antecedentes, a emergência da China é um bem, ou um mal??? Da nossa ótica é claro que pode parecer para muitos uma ameaça à nossa estabilidade e noção de mundo. O que fazer? Resistir, numa cruzada ocidental? Sucumbir e aceitar a inseminação de valores totalmente estranhos, e aliar-se a uma cultura que, embora globalizada, difere radicalmente da nossa? O Brasil não tem, a meu ver, neste momento tão convulsionado, estrutura para resistir a mais uma interferência deste porte. Neste caso, seria a aliança com os Estados Unidos a melhor solução, à vista de como temos sido tratados por eles? A Europa do Brexit? Duro dilema…

É por isto que acredito que a diplomacia do, para mim, maior Chanceler que tivemos nestes últimos tempos, Antonio Azeredo da Silveira, que em 1974, em pleno governo militar, lançou a política do “pragmatismo responsável”, pela qual sufragamos os nossos interesses nacionais acima de ideologias, seja o melhor roteiro. Foi, aliás, nesse contexto – e momento – que transferimos as nossas relações com a China de Taiwan para Pequim, e fomos o primeiro país a reconhecer o governo socialista de Agostinho Neto, em Angola. Seguindo este roteiro, parece-me fundamental que nos aliemos, sempre circunstancialmente, àqueles que nos ofereçam as melhores opções para prosseguirmos no nosso processo de desenvolvimento soberano. Foi assim que aconteceu na década de 70, quando abrimos várias frentes no “Tiers Monde”/ “Terceiro Mundo” (palavra execrável, que bem revela como o “Premier Monde”/”Primeiro Mundo” nos via…), que tantos benefícios trouxe para o nosso conceito internacional, a nossa diplomacia, a nossa economia, e a nossa imagem como país.

Sugiro aos amigos que leiam a matéria abaixo:

Após covid-19, embaixadas chinesas se preparam para globalização geopolítica e multiplicam atritos e propaganda do regime; política externa de Pequim provoca reação de adversários conservadores e moderadosINTERNACIONAL.ESTADAO.COM.BR

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.