ISSN 2674-8053

Negócio(s) da China

Reuters/David Becker

A recente desistência da Boeing do contrato de parceria firmado com a Embraer em meio a uma das maiores crises do setor aeronáutico destes últimos tempos levantou dúvidas sobre o futuro da empresa brasileira. Esta crise coincide com o momento em que a pandemia da Covid19 assola o planeta e causa um enorme estrago no universo da aviação internacional: as companhias aéreas sofreram uma diminuição de mais de 90% do volume de passageiros e suas frotas foram reduzidas em 60%. Com uma grande capacidade ociosa, essas companhias e, por extensão, os fabricantes de aeronaves, assistem o mercado minguar e têm os seus projetos e compromissos cada vez mais ameaçados.

Em meio a este clima de forte tensão, a Embraer foi notificada “monocraticamente” pela Boeing, no dia 25 de abril passado, de que o compromisso que haviam firmado – já aprovado, inclusive, pelos acionistas da empresa brasileira depois de acirradas discussões – estava desfeito. A justificativa foi que a Embraer “não atendeu às condições necessárias” tal como definidas no acordo. Só que até agora a companhia ainda não esclareceu quais teriam sido as condições desatendidas. Fruto disto, as ações da Embraer despencaram, em torno de 7,5%, na semana passada.

Neste cenário turvo, transpirou que a estatal chinesa “Commercial Aircraft Corporation da China”/ Comac, poderia ser uma alternativa para tirar a Embraer “do buraco”. A ideia seria firmar uma parceria similar à que ela estava buscando estabelecer com a Boeing. O Vice-Presidente Hamilton Mourão endossa essas negociações, pelo que transpirou na imprensa: “há males que vêm para bem. Nós temos o produto e eles têm a necessidade. Nós temos a tecnologia… É um casamento inevitável”, teria afirmado. Entretanto, estas aventadas tratativas ainda não foram endossadas pelos chineses que, segundo transpirou, “priorizam a questão da pandemia do coronavírus e os problemas nacionais”. Estratégia?

Do nosso lado, o nó a ser desatado tem viés fortemente ideológico diante da ojeriza de setores do nosso governo em pactuar com a China “comunista”. Esta postura – radical e anacrônica – de certos setores do Palácio do Planalto contrapõe fatores ideológicos, “abstratos”, a meu ver, aos nossos interesses comerciais concretos. A propósito, não devemos nos esquecer de que o governo brasileiro é detentor da “golden share” das ações da Embraer, o que condiciona qualquer decisão à sua aprovação final.

Mas antes de entrarmos em considerações político-comerciais vamos recorrer aos fatos. Quem é a Comac? Fundada em 2008, ela tem por missão aumentar a autonomia da RPC no processo de fabricação e importação de aeronaves. Fato é que ela já enfrentou desgastes e obstáculos para alcançar certificações internacionais para seus produtos, que ainda não são considerados à altura das “gigantes” do setor da aviação regional, como a Bombardier e a Embraer. Como sabemos, esta última detém o domínio no segmento de jatos comerciais de até 150 assentos, e neste quesito ultrapassa gigantes como a europeia Airbus e a própria americana Boeing, situando-se em paridade com a canadense Bombardier. Cabe acrescentar que o perfil das aeronaves a serem objeto da parceria entre as empresas brasileira e chinesa é o que atende a este segmento médio e se encaixa no perfil de ambos os países.

Para melhor entender todo este processo vamos recorrer à História. Este assunto não é novidade, embora escape à memória de alguns:

– Pequim, 2 de dezembro de 2002 : a Embraer assinava nessa data um acordo de “joint venture” com a “Harbin Aircraft Industry (Group) Co., Ltd. e Hafei Aviation Industry Co., Ltd. – empresas controladas pela “China Aviation Industry Corp. II”/ AVIC para construir uma unidade de produção na China. Esta foi a primeira iniciativa industrial da Embraer fora do Brasil para fabricar aeronaves da família ERJ 135/140/145.

A nova empresa, denominada “Harbin Embraer Aircraft Industry Company Ltd.”, estava localizada em Harbin, capital da província de Heilongjiang, no norte da China. “Este evento representa um marco não só na história da Embraer, mas também na história das relações bilaterais dos dois países. China e Brasil têm um enorme potencial de cooperação em diferentes campos de interesse, e estamos confiantes de que este é apenas o primeiro passo para muitas realizações bem-sucedidas no futuro. Acreditamos firmemente que a “Harbin Embraer Aircraft Industry Company” será uma poderosa alavanca para expandir a presença de nossos produtos neste florescente mercado chinês que, com certeza, representará uma parte importante das operações globais da Embraer”, afirmou o então Presidente e CEO da Embraer, Mauricio Botelho, na cerimônia de assinatura do contrato em Pequim. Membro da Academia de Engenharia da RPC, o Prof. Dr. Zhang Yanzhong afirmou entusiasticamente que “this Sino-Brazilian cooperative program will set yet another successful model of South-South Cooperation”.

E o que aconteceu?

Decorridos quatorze anos, a parceria encerrou-se em 2016. Pelo que se soube, a Embraer estava descontente com a falta de ética dos seus parceiros que, aplicando engenharia reversa, passaram a produzir seus próprios “similares” da aeronave brasileira. Ainda assim a empresa não abandonou totalmente o mercado chinês e mantém um centro de serviços e de distribuição de peças em Pequim. Conta, ademais, entre seus clientes, seis companhias chinesas, sobretudo as de aviação regional. Estas já compraram cerca de 150 aviões da Embraer nestes últimos quinze anos. Com isto, ela mantém uma participação de cerca de 70% no mercado de aviões regionais da RPC. O que não é pouco, levando-se em conta as dimensões geográfica e populacional da República Popular. Ou seja, um mercado tentador para qualquer companhia! Com isto, o modelo E19-E2, com capacidade para 146 passageiros, lançado pela Embraer em outubro do ano passado, passou a concorrer com os similares da Bombardier e da Airbus, além dos “Sukhoi Superjet 100”, russo, e “Mistubishi Regional Jet”, japonês. “Briga de cachorro grande” em um setor de infinito futuro…

Mas, que futuro?

No mundo pós-industrial em que países e regiões vivem fenômenos antitéticos e concomitantes de globalização e de interiorização – sobretudo os Estados Unidos, e de certa forma a Europa-, é necessário focarmos a estratégia que melhor atenda ao nosso país. O setor da aviação é certamente um dos promissores, sobretudo no caso de países continentais, como nós e a China. Aí, os espaços a serem ocupados pelos “pioneiros” – entre os quais se inclui a Embraer – merecem ser preservados e alavancados. Isto, requer considerações eminentemente comerciais (que não deixam de ser políticas, em última instância).

Mesclar ideologias com interesses nacionais de longo prazo nos levará, acredito, a um crescente afastamento do mundo pós-pandemia e “pós-sabe-se lá o quê”, no qual a geoeconomia desloca seu eixo cada vez mais para o Pacífico asiático. A grande maioria dos analistas concorda com isto. Neste cenário, o fortalecimento das parcerias mais convenientes e recompensadoras pode nos levar a resgatar o “bom e velho” ecumenismo que tem sido a nossa tradição, mas que estamos perdendo frente à radicalização ideológica.

Pouco sabemos como será o mundo pós-pandemia. Com a experiência que os meus setenta e cinco anos me trouxeram, quero crer que não será muito diferente, apesar das boas intenções que sempre prevalecem em tempos de crise. Mas certamente em algo mudará. Acredito que uma das mudanças será a conscientização da necessidade de fortalecer a cooperação internacional na busca de soluções coordenadas para questões específicas. A República Popular, que de “bandida inoculadora da covid19″ passou a demonstrar grande competência no combate ao vírus e na assistência aos países mais afetados seria certamente um “parceiro estratégico” na luta contra as epidemias.

Acho que pouco interessa para nós, em última análise, em razão do nosso peso específico, a opção ideológica. O que importa, sim, é mantermos todas as vias abertas para todos os países, sem “parti pris”, como tem sido a “cara” da nossa diplomacia tradicional. Aqueles que mais atenderem aos nossos interesses reais e soberanos devem ser os escolhidos. Ainda assim circunstancialmente…

Sugiro aos amigos que leiam a matéria abaixo:


Qual o interesse da Embraer na estatal chinesa Comac?

Por Patricia Faermann -29/04/2020

Jornal GGN

Exclusivo: documento da Embraer previa avanço da estatal chinesa em mercado de aeronaves de pequeno e médio porte e encontrava aí portas para aumento de vendas. O que motivaria um acordo? Qual o potencial, benefício e ameaças que a chinesa apresenta no mercado aéreo?

Jornal GGN – A saída da Boeing do contrato de parceria com a brasileira Embraer, em meio à maior crise do setor aeronáutico dos últimos tempos, acendeu as luzes sobre o futuro da empresa brasileira. Enquanto a terceira maior fabricante de aviões do mundo afirma manter sua capacidade autônoma de competição comercial, integrantes do governo iniciaram uma especulação e estímulo para a brasileira calcar aberturas comerciais junto a outra forte mundial do setor, a chinesa Commercial Aircraft Corporation da China, Comac.

Foi o que o noticiário brasileiro estampou, após as declarações do vice-presidente Hamilton Mourão, nesta segunda-feira (27), afirmando que a Embraer deveria considerar a China como uma parceira de fabricação de aeronaves. “Há males que vêm para bem. Nós temos o produto e eles têm a necessidade. Nós temos a tecnologia… É um casamento inevitável”, afirmou.

Mas enquanto a confiança dada pelo vice somente ampliou as especulações nacionais sobre um interesse do país asiático na fabricante brasileira, a possível parceria sequer foi sentida pela China, que prioriza a pandemia do coronavírus e os problemas nacionais, como mostram os principais jornais chineses, People.cnEastDayBeijing NewsShanghai DailyXinhuanet, entre outros. Já do lado brasileiro, foram as ações da Embraer despencando 7,5% no início da semana que urgiram os mercados, esquentando essa hipótese Embraer-Comac.

Mas o que é afinal a Commercial Aircraft Corporation da China? A Embraer poderia se interessar nessa parceria? Para entender se a fabricante chinesa é realmente um potencial de negócio no setor aéreo para o Brasil, traçamos um histórico da Comac.

Foto: Airliners

Fundada em 2008, a empresa chinesa foi criada com a missão de aumentar a autonomia do país sobre importações de aeronaves. Mas até hoje, o portfólio de aeronaves da fabricante, que já enfrentou desgastes com obstáculos em certificados internacionais e uma mecânica ainda não considerada competitiva para a altura de gigantes como a Embraer e a Bombardier no segmento de jatos, construiu somente duas aeronaves, o ARJ21 e o C919.

O primeiro jato não retribuiu as expectativas da companhia aérea que recebe o apoio estatal -fator que trouxe à fabricante o apelido de “Embraer chinesa” por analistas brasileiros-, e problemas como atrasos nas entregas, excesso de peso e ruídos da aeronave em funcionamento mitigaram uma “primeira imagem” positiva da Comac no setor mundial.

O ARJ21 é um jato com capacidade para 90 passageiros, que está em serviço, mas, devido aos problemas e baixa reputação por sua performance, atende principalmente transportadoras do próprio país, com uma produção que chegou a somente 30 modelos fabricados.

Já a segunda aeronave, o jato C919, vem sendo desenvolvido desde a fundação da empresa e está em outra categoria de jatos comerciais, o de acima de 150 passageiros. A capacidade dessa aeronave é de 156 a 174 assentos e distâncias reduzidas em comparação a aviões maiores, chegando até 5,5 mil quilômetros, características de aviões da Boeing e Airbus. O primeiro protótipo fez um voo inaugural há 3 anos, e novos testes com os últimos ajustes foram realizados no fim do ano passado.

Outro ponto que joga os holofotes para a Comac é a capacidade de produção, mesmo em meio à crise do setor com a pandemia do coronavírus. Enquanto as companhias aéreas sofreram uma redução de mais de 90% dos passageiros, com frotas que caíram mais de 60% no mundo e aviões estacionados, a chinesa não parou de funcionar e anunciou vôos de teste (leia aqui) em quatro cidades nesta semana, Xangai, Yanliang, Dongying e Nanchang.

Do ponto de vista de mercado, a chinesa quis abarcar com o C919 também o baixo custo, que chega a ser menos da metade (US$ 50 milhões) de jatos de características similares, mas com alto reconhecimento mundial, como o Airbus A320 (US$ 110 milhões) e o Boeing 737 Max8 (US$ 120 milhões).

Apesar de um importante número de encomendas, 970, ainda que sem reputação, a maior parte dos clientes são companhias aéreas estatais da China. Somente duas empresas não chinesas quiseram adquirir o modelo, a tailandesa City Airways e a leasing GE Capital Aviation. Somente no ano passado, a Airbus entregou 9 mil jatos A320 e a Boeing mais de 10 mil do modelo 737.

A Embraer detém domínio no segmento de jatos comerciais de até 150 assentos. Neste quesito, a brasileira ultrapassa gigantes como a europeia Airbus e a própria Boeing, ficando no pódio da maior presença internacional de jatos comerciais ao lado da canadense Bombardier. Enquanto os aviões brasileiros são 23%, a Bombadier representa 24% dos jatos hoje em serviço no mundo, conforme mostra o gráfico abaixo:

Já nos números que incluem todos os tipos de aeronaves, a liderança é da Boeing, seguida da Airbus. Embraer e Bombardier empatam em terceiro lugar. Entretanto, a Airbus adquiriu em 2017 participação majoritária da canadense líder em jatos comerciais. Sem figurar entre no ranking de vendas, a China é um importante comprador, sendo o terceiro país que mais detêm aeronaves no mundo, com mercado que corresponde a 21% de toda a projeção global.

Impulsionada pela China, os países da Ásia pacífico detêm 18% da demanda de aviões de até 150 passageiros e a liderança de 32% de todos os aviões no mundo

Relatório do balanço financeiro da Embraer de 2019, obtido pelo GGN (íntegra ao final da reportagem), mostra que a brasileira já alertava para o avanço da China no segmento de aeronaves de pequeno e médio porte. Ao elencar as políticas comerciais do país, a fabricante descrevia que o cenário atual “da frota asiática é o resultado de uma enorme penetração de LCCs [sigla dada para as linhas aéreas de tarifas baixas], com uma estratégia de frota única e baixos custos unitários”.

Apesar de detectar que as companhias aéreas da região “operam principalmente grandes aeronaves e turboélices”, previa que a tendência era atender a rotas regionais com aeronaves menores. “China e Índia, os maiores mercados, introduziram políticas e expandiram o serviço aéreo para conectar aeronaves de pequeno e médio porte. Isso permitirá gradualmente a implementação de um sistema de huband-spoke [otimização da logística aérea, para conectar rotas] eficiente e mais lucrativo”, apontou.

“A CAAC, a autoridade de aviação da China, por exemplo, controla rigorosamente novos pedidos de certificados de operador aéreo. O objetivo é melhorar a rede aérea regional subdesenvolvida, impedindo o crescimento irrestrito das companhias aéreas”, continuava.

A exposição dos interesses da China, que já é um dos maiores compradores de aeronaves da Embraer, revela que a brasileira estava consciente do avanço chinês no segmento cujo domínio detém a Embraer. No documento, a fabricante via nessa busca uma oportunidade de mercado para aumentar as suas exportações.

Ao verificar a planilha das fabricantes de aeronaves, a Comac não está nem próxima de alcançar as vendas que detêm hoje as pioneiras do setor. Outros nomes da França, Alemanha e Reino Unido, além dos Estados Unidos, poderiam significar maiores vantagens à brasileira do que a chinesa, seja em tecnologia ou para incrementar a produção de aviões de grande porte e defesa.

Por outro lado, a recente busca acelerada por autonomia da China neste mercado adverte as vendas da fabricante brasileira, e um possível êxito implicaria na automática diminuição das exportações do Brasil ao país. Na mesma ponta, caso a Comac encontre oportunidade no setor e avance para a fabricação de jatos de até 150 passageiros, haveria o risco de se apresentar como mais um concorrente à Embraer.

A capacidade produtiva em meio à pandemia e a garantia de mercado em um território que projeta deter 21% da demanda por aviões no mundo, e que no histórico passado da brasileira já proibiu a instalação de uma fábrica da Embraer (aqui e aqui) em solo chinês por proteção das fabricantes nacionais, também são outros possíveis atrativos.Leia também:  O que vem depois da crise? O Estado Social nos lembra o seu papel, por Gabriela Neves Delgado e Renata Queiroz Dutra

Em maio do último ano, o vice-presidente Hamilton Mourão cumpriu agenda oficial em Pequim, aonde se encontrou com o vice-presidente chinês Wang Qishan, para tratar de acordos comerciais. Á época, Mourão anunciou que o objetivo prioritário nas relações com o país era a exportação de carnes e a abertura comercial da China para a venda de aviões da Embraer (aqui). Hoje, o vice-presidente volta a falar no possível aliado para a brasileira.

Consultada sobre a hipótese de parceria, a Embraer ressaltou ao GGN que o caso ainda está no campo das especulações. Não negou, contudo, interesse futuro em fechar acordos com o país, que não somente vem alavancando na atuação aérea, como também é hoje um dos compradores de peso da cartela de exportações de aviões brasileiros Embraer. “No momento, não há nenhuma conversa ou negociação em andamento e não temos nada a comentar sobre novas parcerias”, escreveu.

Na resposta oficial, assim como em todas as vias de comunicação (leia o comunicado oficial), a empresa brasileira vem mostrando um fortalecimento da imagem, após a Boeing romper o acordo de Joint Venture. “A Embraer é uma das líderes mundiais da indústria aeronáutica, com uma linha de produtos renovada e extremamente competitiva nos segmentos da aviação comercial, aviação executiva e defesa e segurança, o que certamente atrai o interesse de outros parceiros internacionais”, enviou ao GGN.

Originalmente publicado em https://jornalggn.com.br/transporte-aereo/qual-o-interesse-da-embraer-na-estatal-chinesa-comac/?fbclid=IwAR1OHM28fV0LZmmPzk8Sfwct_oGbcQiv7N7mw6oHRDHlyNB692WQI77U2JQ

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.