ISSN 2674-8053

Carta aos sinólogos

Muitos se questionam sobre o que é Sinologia, o que faz um Sinólogo, quem é considerado Sinólogo ou não e qual o propósito dessa carreira. Como nos ensina a própria Sinologia por meio de uma de suas famosas expressões chengyu: Dào Shān Xué Hǎi (道山学海), que numa tradução livre significa: o aprendizado é tão alto como a montanha e tão profundo como o oceano, porém, se fizermos uma análise literal, veremos que Confúcio, a quem foi atribuída essa expressão, associou Dào (道), o caminho ou doutrina à Shān (山) montanha. De forma que podemos depreender que o caminho para o conhecimento é alto como a montanha, que para alcançar o pico é necessário esforço, sendo assim algo cansativo e trabalhoso. E quando falamos de Dào (道) caminho, trazemos à baila, o Taoísmo, o Budismo Chinês e o Confucionismo que são todas expressões da cultura chinesa que se utilizam desse termo. Depois, na expressão, Confúcio associa Xué (学) aprender com Hǎi (海) oceano, demonstrando que o aprendizado é tão profundo quanto o oceano, que por vezes, parece não ter fim e que uma única pessoa não pode dar conta do todo. Veja então, quantas associações podem ser feitas a partir de uma pequena expressão idiomática. Nessa pequena análise, já citamos Confúcio, Confucionismo, Taoísmo, Budismo e de quebra aprendemos um pouco de chinês. Esse portanto é o propósito da Sinologia, estudar a civilização chinesa em suas mais diversas expressões, de forma a tornar próximo o que parece distante.

Alguns dizem que a Sinologia já morreu, outros a tratam como um estudo antigo e de pouca expressão, algo isolado e sem função. Mas, para entender a importância da sinologia se faz necessário explicar o que é a sinologia. Existem discussões diversas, mas partindo do nome, da semântica, concluímos que sino- que vem do latim tardio Sina, é a própria civilização chinesa, e -logia do grego lógos, significa estudo, assim, chegamos a sinologia, que nada mais é que o estudo da civilização chinesa. Até aqui há pouquíssima discordância. O problema começa quando alguns teóricos querem delimitar o estudo à antiga civilização chinesa e outros buscam relacionar o termo a um sentido politizado com uma herança colonialista. Contudo, o termo original não foi cunhado nem em grego e nem latim, mas com o sentido que temos hoje, foi primeiro visto no Japão, inicialmente eles utilizaram toyogaku (東洋学) que significa o estudo dos orientais, exceptuando-se os próprios japoneses, que reservaram outras denominações, wagaku (和学) e kokugaku (国学), para o estudo do próprio Japão. Depois, os japoneses uniram os termos Guóxué (国学) e Hànxué (汉学) ao termo Sinologia, dando a estes o sentido de estudo da China. Porém esses termos já existiam desde a dinastia Han, mas o sentido era muito diferente do atual, por exemplo Hànxué (汉学) significava o estudo dos textos clássicos e Guóxué (国学) significava escola, depois passou a ter o sentido de nação e por fim, estudo da nação. Foi Lu Xun, escritor chinês e considerado o pai da literatura moderna chinesa, que durante uma viagem ao Japão, no século 20, se deparou com o novo sentido dado a esses termos, enquanto na China os termos tinham diferentes significados, no Japão ambos os termos já eram utilizados para se referir aos estudos relacionados a China tradicional. Cabe salientar, para não nos confundirmos, que o termo kangaku (漢学) se refere ao estudo do Confucianismo no Japão. É importante entender que os termos mudam com o tempo e alteram seus significados. Mas o mais interessante é ver como os próprios chineses definem o tal estudo. Por exemplo, a Universidade de Zhejiang que foi a primeira a criar o curso na China continental, denomina o estudo de Zhōngguó Xué (中国学), estudo da China. A Universidade de Beijing chama-o Hànxué (汉学), estudo da civilização Chinesa. Na Universidade Tsinghua: Guóxué (国学), estudo da Nação. Na Universidade de Fudan: Wén Shǐ (文史), estudo da Literatura e História da China. E por fim, na Universidade Popular da China se define como Guó Xuéyuàn (国学院), estudo da Nação mas associado à uma Academia. Vejamos portanto, que os termos em si, dizem a respeito ao estudo da China, e de tudo que se relaciona à ela. Não há determinação de tempo, antiga china ou china contemporânea, nem se trata de um estudo colonialista, pois os próprios japoneses tinham estudos sobre o Japão e também sobre a China.

Temos então o objeto de estudo da Sinologia, a própria China, que é uma realidade viva e concreta. Não é possível separar o estudo antigo do moderno, são duas margens do mesmo rio. Como dizia Confúcio: “Wēn gù ér zhī xīn, kěyǐ wéi shī yǐ (温故而知新,可以为师矣)”, aprender o novo por meio da revisão da história, pode nos servir como lição. O novo é resultado do que aconteceu no passado, tudo está intrínsecamente ligado. Assim, são sinólogos os que focam na China Antiga e também os que estudam a China atual. Sinologia, de acordo com o dicionário de Oxford é: “​the study of Chinese language, history, customs and politics”. Segundo a Larousse:  “est l’étude de l’histoire, de la langue et de la civilisation chinoises”. Para o Deacademic: “ist ein wissenschaftliches Fachgebiet, zählt zu den Sprach und Kulturwissenschaften und beschäftigt sich seit dem. Jahrhundert mit der chinesischen Sprache, Schrift, Philosophie und Geschichte”. Ou seja, o estudo da sinologia abarca a linguística, a história, a política, os costumes e a filosofia da China. Assim, os alunos que se graduam como tradutores da língua chinesa, os que estudam história da China, política chinesa, as filosofias chinesas, as religiões chinesas, os costumes chineses são todos considerados sinólogos, pois cada um se especializa em uma parte do imenso oceano que é a Sinologia. E por motivos óbvios acabam por se relacionar com as outras áreas, consideradas co-irmãs. Sendo impossível dizer qual dessas partes é a mais importante na Sinologia, contudo é necessário frisar que, sem conhecer a história da China não é possível entender o presente e como nos ensina outro famoso chengyu: Qiǎo fù nán wéi wú mǐ zhī chuī (巧妇难为无米之炊), mesmo a mais sabia dona de casa não pode cozinhar sem arroz, assim, sem compreender o idioma acaba-se por não entender o discurso e arrisca-se em cair na especulação.

Foram vários os Sinólogos que abrilhantaram essa carreira incrível, e prestar homenagem a esses senhores e reconhecer a dívida que devemos para com eles é um rito eminentemente confucionista e universalmente salutar. Sabemos que a tradição sinológica Japonesa e Francesa foram as que mais se desenvolveram e apontar esses países como fonte da tradição sinológica não é nenhum exagero. Masaru Aoki, apaixonado pelos dramas chineses, Tetsuji Morohashi e suas importantes contribuições à lexicografia chinesa, Naito Torajiro, uma autoridade da historiografia chinesa, Édouard Chavannes, considerado o pai da sinologia moderna, Paul Pelliot, o grande estudioso e aventureiro que fez uma expedição pela Asia central, Marcel Granet, cujo método sociológico inspirado em Durkheim e Mauss foi um marco na Sinologia, Henri Maspero, que foi essencial para os estudos taoístas, entre outros, aliás não foram muitos os estudiosos dessa seara, mas foram extremamente valiosos e valorosos os que por aqui se aventuraram. Cabe citar o sinologista Paul Demiéville, pois foi ele quem formou a geração de novos mestres no imediato pós-guerra, ele fora portanto o grandioso representante de uma sinologia humanista e enciclopédica cuja fonte é encontrada nos estudos greco-latinos. Claro que todos esses formam pares com estudiosos chineses e japoneses que haviam recebido treinamento tradicional no qual a perícia filológica e textual tem precedência. Como Zhu Weizheng, um eminente especialista em  Jīngxué (经学) “estudos canônicos” na Universidade de Fudan em Xangai. Outros nomes importantíssimos e a quem devemos aulas incríveis sobre a história chinesa são o renomado escrito Jonathan D. Spence e o essencial Endymion Wilkinson que ainda hoje nos guiam nos meandros dos estudos da China. E para provar que a Sinologia segue viva e frutífera temos expoentes na área da filosofia, como a renomada Anne Cheng do College de France e a escritora e historiadora Patricia Ebrey que produzem mais do que estudos, verdadeiras obras de arte. Com certeza, outros nomes tão importantes e tão relevantes deveriam figurar aqui, mas estes são apenas alguns exemplos do que é ser Sinólogo.

Hoje os sinólogos se deparam com uma situação onde suas habilidades são necessárias e estratégicas. A China mudou e continua a mudar diante de nossos olhos a uma velocidade vertiginosa, desde sua abertura ao mundo, ou melhor, à globalização, veio a tona também o despraparo, o preconceito e a falta de interesse das elites e dos governantes. A China é hoje o maior parceiro comercial de vários países do mundo e a incompreensão em relação à China e à sua cultura continuam a ser preocupantes. A mídia brasileira por exemplo, na maioria de suas reportagens ou análises reportam a China da década de 90, falam de um comunismo da década de 80, exploram as adversidades da década de 70, como se nada tivesse mudado. Muitos ignoram por completo os nomes das cidades, dos principais políticos chineses e ainda mais dos personagens históricos. Falam da China de forma folclórica, banal, despretigiosa e invariavelmente seguindo a tintura do preto e branco, sem compreender que este imenso país tem muitas nuances. Só que a China mudou, as ideologias na China são muitas, até o comunismo na China é outro. Comunismo com características chinesas, o que é isso? A importância cada vez maior do Confucionismo na política, quem discute isso no Brasil? Existem discussões muito interessantes na sociedade chinesa que nao chegam no ocidente. E isso é falha primeiramente da Academia que não se interessa, das elites preconceituosas, dos políticos que não tem visão estratégica e por fim da mídia que é influenciada por todos estes atores e não faz uma cobertura imparcial. E é nesse ponto, para remediar a ignorância, que se insere o trabalho do sinologo. É uma missão. É uma construção de pontes, de entendimentos e de relacionamentos entre povos e culturas. E não é uma missão fácil. Pois esse é um terreno que pelo menos na América Latina tem pouquíssima expressão. Alguns sabem quem foi Confúcio, Lao-tzu ou o Yi-king, mas Zhu Xi ou Wang Yangming, poucos sabem, só que estes nomes foram tão importantes no Oriente como Lutero no Ocidente por exemplo.

Os sinólogos tem um imenso trabalho pela frente, unificar as representações da China. Conciliar a imagem de uma “China filosófica” à la Voltaire, racionalista e estética, como a ponta da civilização e da universalidade e, por outro, a de uma China resultante de um “despotismo oriental” à la Montesquieu, autocrático e maquiavélico, cruel e brutal. Combater as generalizações que abundam nos dias de Fakenews. Expandir o conhecimento sobre esse mar que inicialmente nos parece monocromático, mas que ao desvendá-lo passamos a conhecer mais sobre um país de proporções continentais, muito antigo, muito diverso e obviamente muito rico culturalmente. Desde 1949 a China passa por mudanças extremadas, hoje a China tem outra posição e lugar no mundo. Os americanos ainda durante o governo Reagan perceberam que a China não era simplesmente uma nação exótica e gigante, mas também um parceiro econômico e competidor. Desde a política de abertura da China, a partir de 1978, houve uma aproximação maior entre Oriente e Ocidente, milhões de alunos chineses foram estudar na Europa e América do Norte, criando um paradigma sem precedentes no mundo acadêmico americano, quase todas as universidades nos Estados Unidos tem pelo menos uma seção de estudos sobre a China ou o Leste Asiático. Mas na América Latina isso ainda é uma novidade.

Hoje a China quer tomar conta de sua própria imagem. Nos últimos anos a China passou a participar ativamente nos meios acadêmicos de forma a assimilar toda a contribuição das ciências humanas ocidentais e reavendo então as suas próprias tradições. Assim, desde os anos 2000, começa o renascimento dos estudos nacionais, ou popularmente conhecido como China Studies, onde os próprios chineses se voltam para si e se reapropriam de seu passado. Isso não significa que eles estão melhor preparados para o estudo da sua própria história, pois podem sofrer diversas influências, sejam das interpretações ocidentais ou de teses de inspiração principalmente culturalista, que advogam possuir a verdade em nome de sua origem “autêntica”, ou seja “pura”. Claro também, que o pano de fundo dessa reapropriação é extremamente relevante, não podemos esquecer que a China passou por quase um século e meio de humilhação, invasões e exploração e as gerações que passaram por estas experiências ainda estão vivas, e foram estas as gerações que lutaram e se esforçaram para chegar na situação atual, onde a China é vista como um poder em ascensão. O nacionalismo então tem sua parte nesse ambiente.

Como em todos os grandes impérios do mundo e ainda mais num mundo globalizado, a via é sempre de duas mãos, ao influenciar os outros, acaba-se pelos outros sendo influenciado. Assim, a China que envia milhões de cidadãos para estudar e viajar pelo mundo, acaba por trazer essas influencias de todas as partes, principalmente dos países Ocidentais que são alvo preferencial de estudantes e acadêmicos chineses. Porém, por essa via, por onde trafegam imensos avanços na área comercial, industrial e principalmente tecnológica, no diálogo, só se vê desencontros. Os sinologistas ocidentais seguem atraídos pelo pensamento chinês antigo, enquanto os chineses se voltam principalmente para a filosofia ocidental moderna. Além disso, existe uma forte visão orientalista, que tende a “museificar” o pensamento chinês e reduzi-lo ao papel do “outro”. Daí nasce a versão de que Sinologia se refere ao passado e não ao novo, como já vimos, um disparate limitante.

Entretanto, a Sinologia é ilimitada e serve hoje mais do que para desconstruir uma entidade considerada monolítica, serve também para questionar, explorar e desvelar todo uma civilização, é um bem estratégico e os que se utilizam desse bem, poderão encontrar saídas e caminhos que trarão benefícios para seus negócios, países e regiões. O Brasil por exemplo, precisa urgentemente de uma abordagem estratégica em relação à China. O Brasil não é uma grande mercearia produtora de comodities e a China não é um comprador esfomeado e necessitado. Conhecer a sociedade chinesa, sua cultura, sua mídia, seu mercado interno, seu sistema político, sistema financeiro, sistema judiciário, seus planos quinquenais, entre outros, trará dividendos imensuráveis, pois o mercado consumidor chinês é gigantesco e o poder de compra dos chineses só aumenta. Essa é uma aventura que só trará benefícios, os chineses vão aprender mais sobre si mesmos, os ocidentais vão conhecer uma outra visão, daí com esforço, alcançaremos o pico e teremos mais conhecimento do que acontece nas profundezas do oceano.

Rodrigo Moura
Diretor de Relações Internacionais do Instituto IBRACHINA. Mestrando em Estudos Chineses pela Universidade de Zhejiang e Especialista em Negócios Internacionais pela FGV (2016).