Os especialistas têm-se empenhado, nestes primeiros meses de governo, em decifrar os primeiros sinais da estratégia que a administração do Presidente Joe Biden irá desenvolver com relação à China. A pergunta que eles se fazem é se teriam continuidade as práticas de demonização da República Popular da China de Donald Trump, e a “guerra comercial” em que se engalfinharam, desestabilizando não somente o comércio entre os dois hegemons, senão também afetando a todos os demais países, forçados a conviver e eventualmente tomar maior ou menor partido nesta briga de gigantes, da qual, por exemplo, a tecnologia 5G é uma clara evidência.
Na “era Trump”, alguns deles alinharam-se com Pequim, por diferentes razões e estratégias, notadamente o Paquistão, a Malásia, Sri Lanka, a Coreia do Norte, e alguns membros da ASEAN. Outros, entretanto, preferiram voltar-se para o Ocidente (leia-se Estados Unidos), por iguais preocupações estratégicas: Índia, Japão e Coreia do Sul, principalmente. Coincidentemente, estas são as economias mais poderosas da Ásia: Japão, o terceiro maior PIB mundial; Índia, o sexto; e Coreia do Sul, o décimo, segundo o FMI/2019.
Permaneceram subliminarmente “neutros” Tailândia, Indonésia, Filipinas e Myanmar, que buscam aferir vantagens no processo de expansão da “Belt and Road Initiative” – a Nova Rota da Seda – patrocinada com enormes recursos financeiros pela República Popular no seu projeto ambicioso de unir o continente eurasiático e a África, numa conurbação hegemônica, que ela pretende liderar. Paralelamente a este cenário, há que acrescentar, mais recentemente, a “Parceria Econômica Regional Abrangente” (RCEP, sigla em inglês), o acordo que acaba de ser concluído entre os dez estados membros da ASEAN, a China, o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália e a Nova Zelândia, que constituirá a maior zona de livre comércio do mundo. Absolutamente desestabilizadora para o comércio internacional quando entrar em vigor (está em processo de ratificação), e inteiramente asiática…
Foi assim com D.T.. É neste cenário que entra Joe Biden e a sua administração democrata…
Vamos, antes de tudo, convir em que a Ásia tem sido tradicionalmente um enigma para as administrações americanas, que encontram na região gigantes civilizacionais e econômicos cuja longa história compartilhada revela nuances e apresenta desafios que ultrapassam o ideário simplista do Ocidente “Trump style”… e que ganham crescente musculatura no processo de globalização liderado pelas inovações tecnológicas.
É nesse contexto que os analistas estão buscando decifrar a mensagem do que terá sido o primeiro contato telefônico de Biden com Xi Jiping após sua assunção no cargo; nele, o presidente americano alertou que “preservar a região do Indo-Pacífico livre e aberta” seria uma das suas principais prioridades. Semelhante afirmação ele fez ao Primeiro-Ministro indiano, Narendra Modi, e agiu da mesma maneira com o líder sul-coreano Moon Jae-in, chamando a aliança EUA-Coreia do Sul de “o eixo da segurança e prosperidade do Indo-Pacífico”. Paralelamente, em um telefonema entre Biden e o primeiro-ministro japonês Yoshihide Suga, os dois líderes reiteraram a importância da aliança EUA-Japão como a “pedra angular da paz e da prosperidade em um Indo-Pacífico livre e aberto”, de acordo com um sumário da conversa feito pela Casa Branca.
O eminente professor Van Jackson, em matéria publicada na “Foreign Affairs” deste mês de março, assinalou que “ há apenas uma década atrás, a frase “Indo-Pacífico” teria deixado a maioria dos especialistas em política externa “coçando a cabeça (”scratching their heads”)”. Hoje, não é apenas linguagem comum em Washington, mas evidencia a revisão de conceitos sobre a Ásia que está mobilizando a política externa dos EUA. Ou seja, o compromisso dos americanos com a segurança da região passaria a ter precedência às disputas econômico-comerciais que azedaram tanto as relações entre chineses e americanos no período “Trump”.
Será?
Vamos tentar entender… O conceito moderno de “Indo-Pacífico” remonta a 2007, quando o Primeiro-Ministro japonês Shinzo Abe mencionou num discurso, na Índia, que “os oceanos Pacífico e Índico estão agora desenvolvendo uma dinâmica, de mares de liberdade e de prosperidade. Esta Ásia ampliada, que ultrapassa as fronteiras geográficas, está agora tomando uma forma distinta.” Após este discurso, o Indo-Pacífico tornou-se referencial recorrente nos círculos de política externa tanto japoneses quanto indianos, e até australianos. O tema tem grande relevância para os países limítrofes: o real objetivo deste esforço conjunto, assinalam os analistas, é diluir o poderio da China no leste da Ásia e restabelecer o oceano Indo-Pacífico como vetor de prosperidade compartilhada pelas nações ribeirinhas.
É neste contexto que aumentaram recentemente os temores de que a China lançará em breve um ataque militar contra Taiwan. É o que afirma a matéria publicada no site “The Diplomat”, ontem, 20/03. Segundo ele, três fatores estão alimentando estes temores. A primeira é “a avaliação de vários especialistas de que o Exército de Libertação Popular (PLA) já atingiu, ou está muito perto de atingir, um tal nível de potência que torna possível tentar obrigar Taiwan a se reunificar com o Continente”. Foi o que afirmou o Almirante Philip Davidson, Chefe do Comando Militar Indo-Pacífico dos EUA, perante um Comitê do Senado dos EUA em fevereiro passado: “a China poderia tentar tomar Taiwan por meios militares nos próximos seis anos”.
O segundo fator é a recente intensificação da pressão militar do PLA sobre Taiwan. Aviões de guerra chineses voaram perto da Ilha quase diariamente, em 2020, e aeronaves cruzaram a linha média do Estreito de Taiwan, quebrando um tabu que ambos os lados geralmente respeitavam. A mídia chinesa disse que o exercício militar perto do Estreito de Taiwan em setembro de 2020 não era “um aviso, mas um ensaio para a retomada de Taiwan”. O terceiro é a percepção do aumento, em geral, da agressividade da política externa de Pequim. Os que assim pensam apontam para os recentes violentos confrontos nas fronteiras da China com a Índia e a agressividade da República Popular nos litígios territoriais no Mar do Sul da China. Muitos observadores acreditam particularmente que o tratamento que a China está dando a Hong Kong constitui “sinais” do que poderia acontecer com Taiwan. Para estes analistas está claro que é a vigilância e a reação negativa da comunidade internacional que impedem o governo chinês de tomar medidas militares contra Taiwan.
O analista chinês Cui Lei, do “Instituto de Relações Internacionais da China”, entretanto, argumentou recentemente que os líderes chineses se sentem obrigados a manter uma imagem de dureza em relação a Taiwan, mas não têm intenção de lançar um ataque militar num futuro previsível. Cui argumentou que a ação militar é muito assustadora porque o povo de Taiwan não se submeterá sem lutar, e os Estados Unidos ajudariam a defender Taiwan, primeiramente pelo compromisso que assumiram pela defesa da Ilha quando assinaram o “Taiwan Relations Act”, em 1979, no momento em que transferiram o reconhecimento da China de Taipé para Pequim, e também por temor de perder sua liderança na região. O poderio militar da China não é tão forte quanto o dos americanos. Ademais essa guerra causaria profunda reação na própria China, que, aliada ao opróbio da comunidade internacional, inviabilizaria qualquer projeto chinês de internacionalização e modernização.
A pergunta que não quer se calar é se a nova administração americana estaria trocando o seu foco com relação à China e passando a priorizar a segurança em vez da disputa econômico-comercial…Os especialistas, entretanto, entendem que os dois temas são “filhos da mesma mãe”, ou seja, caras distintas da mesma disputa pela hegemonia geopolítica/geoeconômica…
Sugiro aos amigos que leiam a matéria do “The Diplomat”: Rumors of War in the Taiwan Strait