Polemizando…
Eu comentei no artigo Fim (?) da Guerra no Afeganistão, no dia 14/04, a decisão do Presidente americano Joe Biden de que as tropas americanas abandonem definitivamente o Afeganistão. Segundo o anúncio da Casa Branca, os últimos contingentes, de 2,5 mil soldados, deixarão o país até o dia 11 de setembro, data simbólica, aliás, quando se celebram os vinte anos da invasão ordenada por George W. Bush.
Esta decisão repercute as intensas e por vezes dramáticas negociações que tiveram lugar em Doha, no Qatar, entre autoridades americanas e representantes dos talibãs, testemunhadas por representantes de alguns países da região, mas sem a presença de enviados do governo de Cabul, que culminaram na assinatura de um acordo que visa a retirada gradual das tropas americanas e dos demais membros da OTAN dentro de treze meses. Cabe, a bem da verdade, relembrar que esta iniciativa partiu de Donald Trump, em pela disputa pela reeleição. Os países da OTAN decidiram acompanhar a decisão de Washington e retirar também as forças da “Missão de Apoio Resoluto no Afeganistão” até 1º de maio, com plano de concluir a tarefa dentro de poucos meses.
O analista indo-americano Fareed Zakaria, em artigo publicado no “Washington Post”, que o Estadão do dia 02 /05 repercute, intitulado “O terrorismo islâmico desapareceu”, afirma que “o diagnóstico inicial é claro: o movimento radical está em mau estado”. Segundo ele ”o terrorismo islâmico hoje tende a ser local – o Taleban no Afeganistão, o grupo Boko Haram na Nigéria, o Al Shabah no Chifre da África. É uma grande reversão dos dias de glória da Al Qaeda, quando seus líderes insistiam que o foco deveria estar não no “inimigo próximo” (os regimes locais), mas no “inimigo distante (os Estados Unidos e o Ocidente num sentido mais amplo).” Prosseguindo, Zakharia afirma que “ a Al Qaeda se fragmentou num grupo de milícias atuando nos locais mais diversos , sem nenhum comando central ou ideologia comum”.
“Wishful thinking?”
Vejamos. O Presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, que não foi convidado para a reunião de Doha – e reagiu de forma contundente aos acordos alcançados – publicou um artigo na última edição da “Foreign Affairs”, intitulado “Afghanistan´s Moment of Risk and Opportunity”, em que tece algumas considerações sobre o que a partida das tropas ocidentais pode significar para o seu país (e, por extensão, para o entorno). Ele começa por afirmar que “o governo afegão respeita a decisão e a vê como uma oportunidade e um risco para si próprio, para os afegãos, para o Talibã e para a região”, pois representa um ponto de inflexão (“a turning point”) para seu país e a vizinhança.
Ele vai mais além e assinala que “seu governo continua pronto para continuar as negociações com os Talibãs”. E acrescenta que “caso isto possa significar a garantia da paz, estou disposto a terminar meu mandato mais cedo”, numa espécie de compromisso com os opositores, que não reconhecem o seu governo. Ghani aduz que a retirada das tropas estrangeiras “representa uma oportunidade para o povo afegão alcançar sua verdadeira soberania, que lhe tem sido negada nos últimos 20 anos em que quarenta países distintos enviaram forças de segurança para o Afeganistão”.
Ghani afirma, ademais, que a partir da retirada das tropas ocidentais, todas as decisões sobre abordagens militares com relação aos grupos extremistas serão tomadas por seu governo (que a liderança talibã não reconhece), uma vez que “a justificativa do Talibã para a guerra — a resistência armada contra uma potência estrangeira — deixará de ser aplicada”. E faz um alerta no sentido de que para o encarrilamento da vida nacional “o Talibã deve responder a perguntas críticas sobre sua visão para o Afeganistão”: “aceitarão eles novas eleições e se comprometerão a defender os direitos de todos os afegãos, incluindo meninas, mulheres e as minorias… uma vez que “o Talibã continua mais interessado no poder do que na paz ?” Para ele, “um acordo político e a integração do grupo sectário à sociedade e sua participação no governo é o único caminho a seguir… mas “a bola está na quadra deles”, acrescentou.
A busca de um entendimento deverá enfrentar questionamentos difíceis, tais como – e se – os talibãs terminariam seu relacionamento com o vizinho Paquistão, que lhes dá apoio logístico, financeiro e recruta os “mujahiddens” radicais em nome da fé sunita. Estas negociações também devem abordar as atuais conexões do Talibã com a Al Qaeda, da mesma forma que é crucial que ambos – governo e talibãs – concordem numa abordagem contra o oponente comum, o Estado Islâmico (ou ISIS), além da Al Qaeda e outros grupos terroristas, acordo este que obtenha a garantia de apoio dos outros países da região e das organizações internacionais.
Fácil?
A melhor solução para este emaranhado de dilemas reside no que o próprio presidente afegão menciona no seu texto: a reunião da “Loya Jirga”, a assembleia dos lideres das tribos e dos clãs, a mais tradicional – e única, a meu ver – forma de construir consenso entre todos. É o que ele receita: “once the Afghan government and the Taliban have reached a settlement, the Afghan people would need to publicly endorse it through our country’s highest form of national consensus building: a loya jirga, a grand meeting of male and female community leaders from every province”.
Ancestralmente esta tem sido a maneira de harmonizar a convivência no solo afegão, já que o país “Afeganistão” – uma sociedade ancestral multiétnica e principalmente tribal – é uma invenção do colonialismo europeu. A população é composta por numerosos grupos etnolinguísticos: Pashtun, Tajik, Hazara, Uzbeque, Aimaq, Turcomen, Baloch, Pashai, Nuristani, Gujjar, Árabe, Brahui, Qizilbash, Pamiri, Quirguiz, Sadat, etc., todos ancestralmente ciosos das suas raízes e da sua independência. Neste cenário, a única forma de administrar o território é através deste conceito básico de democracia: o acordo comum construído no seio de uma assembleia de líderes.
Básico…mas que os ocidentais que invadiram o Afeganistão após a catástrofe das Torres Gêmeas, em 2001, nunca entenderam, e impuseram um regime presidencialista ”western style”, através de um preposto, Hamid Karzai, que nunca governou o país, de fato. Polemizando, até por experiência própria, não vejo nenhum futuro para um país tão estratégico como o Afeganistão (basta consultar o mapa), se a vizinhança – e outrem – não deixarem de interferir na sua vida política. Não nos esqueçamos de que o território afegão foi um “tampão” entre os impérios russo e britânico no século XIX, período nefasto que a História consagrou como o “Grande Jogo” (the “Great Game”). Por longínquo de nós que isto possa parecer, as consequências são perniciosas e mundiais, como atesta a incapacidade que o mundo revela em curvar as várias vertentes do terrorismo.
Assim, a pergunta que não quer se calar é: será que Zakaria teria razão, ou será que a sua afirmação de que “o terrorismo islâmico desapareceu” não se trata de uma percepção do Ocidente central para pulverizar a resposta – e a responsabilidade que lhe cabe – para uma equação “espinhosa” que não consegue solucionar? O século XIX/XX teima em não acabar…
To be continued…