ISSN 2674-8053

O fim (?) da Guerra do Afeganistão II

Soldados do Hospital Naval dos EUA e US Mariners no Afeganistão (Foto Reuters)

Polemizando…

Eu comentei no artigo Fim (?) da Guerra no Afeganistão, no dia 14/04, a decisão do Presidente americano Joe Biden de que as tropas americanas abandonem definitivamente o Afeganistão. Segundo o anúncio da Casa Branca, os últimos contingentes, de 2,5 mil soldados, deixarão o país até o dia 11 de setembro, data simbólica, aliás, quando se celebram os vinte anos da invasão ordenada por George W. Bush.

Esta decisão repercute as intensas e por vezes dramáticas negociações que tiveram lugar em Doha, no Qatar, entre autoridades americanas e representantes dos talibãs, testemunhadas por representantes de alguns países da região, mas sem a presença de enviados do governo de Cabul, que culminaram na assinatura de um acordo que visa a retirada gradual das tropas americanas e dos demais membros da OTAN dentro de treze meses. Cabe, a bem da verdade, relembrar que esta iniciativa partiu de Donald Trump, em pela disputa pela reeleição. Os países da OTAN decidiram acompanhar a decisão de Washington e retirar também as forças da “Missão de Apoio Resoluto no Afeganistão” até 1º de maio, com plano de concluir a tarefa dentro de poucos meses.

O analista indo-americano Fareed Zakaria, em artigo publicado no “Washington Post”, que o Estadão do dia 02 /05 repercute, intitulado “O terrorismo islâmico desapareceu”, afirma que “o diagnóstico inicial é claro: o movimento radical está em mau estado”. Segundo ele ”o terrorismo islâmico hoje tende a ser local – o Taleban no Afeganistão, o grupo Boko Haram na Nigéria, o Al Shabah no Chifre da África. É uma grande reversão dos dias de glória da Al Qaeda, quando seus líderes insistiam que o foco deveria estar não no “inimigo próximo” (os regimes locais), mas no “inimigo distante (os Estados Unidos e o Ocidente num sentido mais amplo).” Prosseguindo, Zakharia afirma que “ a Al Qaeda se fragmentou num grupo de milícias atuando nos locais mais diversos , sem nenhum comando central ou ideologia comum”.

“Wishful thinking?”

Vejamos. O Presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, que não foi convidado para a reunião de Doha – e reagiu de forma contundente aos acordos alcançados – publicou um artigo na última edição da “Foreign Affairs”, intitulado “Afghanistan´s Moment of Risk and Opportunity”, em que tece algumas considerações sobre o que a partida das tropas ocidentais pode significar para o seu país (e, por extensão, para o entorno). Ele começa por afirmar que “o governo afegão respeita a decisão e a vê como uma oportunidade e um risco para si próprio, para os afegãos, para o Talibã e para a região”, pois representa um ponto de inflexão (“a turning point”) para seu país e a vizinhança.

Ele vai mais além e assinala que “seu governo continua pronto para continuar as negociações com os Talibãs”. E acrescenta que “caso isto possa significar a garantia da paz, estou disposto a terminar meu mandato mais cedo”, numa espécie de compromisso com os opositores, que não reconhecem o seu governo. Ghani aduz que a retirada das tropas estrangeiras “representa uma oportunidade para o povo afegão alcançar sua verdadeira soberania, que lhe tem sido negada nos últimos 20 anos em que quarenta países distintos enviaram forças de segurança para o Afeganistão”.

Ghani afirma, ademais, que a partir da retirada das tropas ocidentais, todas as decisões sobre abordagens militares com relação aos grupos extremistas serão tomadas por seu governo (que a liderança talibã não reconhece), uma vez que “a justificativa do Talibã para a guerra — a resistência armada contra uma potência estrangeira — deixará de ser aplicada”. E faz um alerta no sentido de que para o encarrilamento da vida nacional “o Talibã deve responder a perguntas críticas sobre sua visão para o Afeganistão”: “aceitarão eles novas eleições e se comprometerão a defender os direitos de todos os afegãos, incluindo meninas, mulheres e as minorias… uma vez que “o Talibã continua mais interessado no poder do que na paz ?” Para ele, “um acordo político e a integração do grupo sectário à sociedade e sua participação no governo é o único caminho a seguir… mas “a bola está na quadra deles”, acrescentou.

A busca de um entendimento deverá enfrentar questionamentos difíceis, tais como – e se – os talibãs terminariam seu relacionamento com o vizinho Paquistão, que lhes dá apoio logístico, financeiro e recruta os “mujahiddens” radicais em nome da fé sunita. Estas negociações também devem abordar as atuais conexões do Talibã com a Al Qaeda, da mesma forma que é crucial que ambos – governo e talibãs – concordem numa abordagem contra o oponente comum, o Estado Islâmico (ou ISIS), além da Al Qaeda e outros grupos terroristas, acordo este que obtenha a garantia de apoio dos outros países da região e das organizações internacionais.

Fácil?

A melhor solução para este emaranhado de dilemas reside no que o próprio presidente afegão menciona no seu texto: a reunião da “Loya Jirga”, a assembleia dos lideres das tribos e dos clãs, a mais tradicional – e única, a meu ver – forma de construir consenso entre todos. É o que ele receita: “once the Afghan government and the Taliban have reached a settlement, the Afghan people would need to publicly endorse it through our country’s highest form of national consensus building: a loya jirga, a grand meeting of male and female community leaders from every province”.

Ancestralmente esta tem sido a maneira de harmonizar a convivência no solo afegão, já que o país “Afeganistão” – uma sociedade ancestral multiétnica e principalmente tribal – é uma invenção do colonialismo europeu. A população é composta por numerosos grupos etnolinguísticos: Pashtun, Tajik, Hazara, Uzbeque, Aimaq, Turcomen, Baloch, Pashai, Nuristani, Gujjar, Árabe, Brahui, Qizilbash, Pamiri, Quirguiz, Sadat, etc., todos ancestralmente ciosos das suas raízes e da sua independência. Neste cenário, a única forma de administrar o território é através deste conceito básico de democracia: o acordo comum construído no seio de uma assembleia de líderes.

Básico…mas que os ocidentais que invadiram o Afeganistão após a catástrofe das Torres Gêmeas, em 2001, nunca entenderam, e impuseram um regime presidencialista ”western style”, através de um preposto, Hamid Karzai, que nunca governou o país, de fato. Polemizando, até por experiência própria, não vejo nenhum futuro para um país tão estratégico como o Afeganistão (basta consultar o mapa), se a vizinhança – e outrem – não deixarem de interferir na sua vida política. Não nos esqueçamos de que o território afegão foi um “tampão” entre os impérios russo e britânico no século XIX, período nefasto que a História consagrou como o “Grande Jogo” (the “Great Game”). Por longínquo de nós que isto possa parecer, as consequências são perniciosas e mundiais, como atesta a incapacidade que o mundo revela em curvar as várias vertentes do terrorismo.

Assim, a pergunta que não quer se calar é: será que Zakaria teria razão, ou será que a sua afirmação de que “o terrorismo islâmico desapareceu” não se trata de uma percepção do Ocidente central para pulverizar a resposta – e a responsabilidade que lhe cabe – para uma equação “espinhosa” que não consegue solucionar? O século XIX/XX teima em não acabar…

To be continued…

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.