A visita de Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes do Congresso americano a Taiwan, ontem, 02/08, teve o “mérito” de angariar tanto a discordância do Presidente Joe Biden quanto o opróbio dos chineses continentais. Confrontado com o “fait accompli”, Biden limitou-se a demonstrar sua contrariedade para com a iniciativa e alegar, como justificativa, a independência do Legislativo na ordem constitucional americana. Pequim, de sua parte, como esperado, considerou a visita uma “provocação militar”. Foram deslocados aviões de caça para o Estreito de Taiwan, ameaçando romper o acordo tácito entre os dois lados do estreito de manter uma “segurança insegura” na área. Num artigo do Washington Post que foi publicado após seu desembarque na Ilha, Pelosi justificou sua viagem como um sinal do compromisso dos EUA com a preservação da democracia e a soberania de Taiwan “frente às agressões de Pequim”. Ela afirmou que a visita não muda a política externa americana para Taiwan, prevista em acordos bilaterais com a China.
Será? Vamos aos fatos.
A História se repete…Tomo como referência para esta análise a minha experiência pessoal, pois estava servindo na nossa Embaixada em Pequim, em 1995, quando o então Presidente “separatista” de Taiwan, Lee Teng-hui, realizou, em março de 1995, uma visita “privada” à “Iowa State University” (ISU), sua “alma mater” americana. Foi durante o governo Clinton. Pequim reagiu com grande contundência, e o Exército de Libertação Popular realizou várias manobras e movimentos intimidatórios ao longo do Estreito durante os anos de 1995 e 1996. Os que estávamos servindo na China pensávamos que a situação poderia se derivar para um confronto armado de dimensões incalculáveis, visto o compromisso assumido pelos Estados Unidos de preservar a segurança e a incolumidade da Ilha pelo “Taiwan Relations Act”, quando, em 1979, transferiram o reconhecimento do país, de Taipé para Pequim. A partir de então, esta lei passou a definir oficialmente as relações entre os EUA e Taiwan como “substanciais”, mas não diplomáticas.
Neste ponto seria bom analisarmos de forma tão isenta como possível o que está acontecendo.
Um dos pilares para se entender o que é a China é o conceito de “CIVILIZAÇÃO chinesa” antes mesmo do que é o país CHINA. O seu significado em mandarim é Zhonguo (中華), “a terra do Meio/Centro”, ou seja, um conceito que envolve a História, as tradições e os anseios compartilhados por toda a população. Este conceito se realiza dentro de um território, que tem que ser preservado contra os “bárbaros”, ou seja, todos aqueles que não fazem parte deste universo-conceito. Para manter esta unidade, durante milênios os chineses erigiram muralhas que impediam a entrada dos ‘bárbaros”, que é como eles nomeavam todos aqueles que não são de cepa chinesa. A história da Grande Muralha da China começou quando vários estados feudais que combatiam entre si durante os chamados períodos da “Primavera e Outono” (771-476 AEC.) e dos “Estados Combatentes” (475-221 a.C.) foram unificados pelo primeiro imperador da China, Qin Shi Huang, para proteger sua recém-fundada dinastia Qin (221-206 AEC) contra incursões de nômades do interior da Ásia. Ora, a mesma muralha que impede a entrada também o faz para a saída…ou seja, preserva o espaço…
Desde então, a unidade do território está no âmago do que é a “China”. Tanto é assim que em apenas um momento da sua História ela tentou invadir, para ocupar, um outro país: foi quando os mongóis liderados pelo neto de Genghis Khan. Kubilai Khan, que haviam tomado o poder e fundado a dinastia Yuan (1274 -1281 EC), tentaram conquistar, em vão, o reino do Japão. A partir de então os chineses se fecharam para o mundo até que os países ocidentais, com os ingleses à frente, romperam este isolamento, no século XIX, e impuseram sansões ao império Qing nas duas chamadas “Guerras do Ópio”, e tornaram para os chineses esse século no das “humilhações”. Este é, aliás, um dos motivos psicossociais que levaram os comunistas de Mao Zedong ao poder em Pequim, em 1949. Estes territórios são inalienáveis para ela, que exige o reconhecimento do “princípio de uma só China” a todos os países que com ela estabeleçam relações diplomáticas.
E o que constitui a unidade da China?
Para os chineses, o seu território é conformado por 23 províncias, cinco regiões autônomas (Inner Mongolia, Guangxi, Tibet, Ningxia e Xinjiang), quatro municípios e duas regiões administrativas especiais (Hong Kong e Macau). Como vemos, este conceito engloba o Tibet, Xinjiang e Hong Kong, que são atualmente foco de controvérsias no Ocidente; além de Taiwan, que Pequim considera a “ilha rebelde” desde que, em 1949, Chiang Kai-shek e seus aliados do partido nacionalista Kuomintang ali se refugiaram fugindo dos comunistas de Pequim.
Agora nos dirijamos para o outro lado do estreito…Quando os nacionalistas chegaram a Taiwan, em 1949, encontraram um território abandonado pelos japoneses que desde a vitória na “Primeira Guerra Sino-Japonesa”, de 1895, haviam colonizado a ilha que o império Qing tivera de ceder-lhes “à perpetuidade”, pelo Tratado de Shimonoseki. A influência nipônica era tão forte naquele então que muitos taiwaneses sequer dominavam o mandarim ancestral.
A partir desta chegada e dos primeiros tempos conturbados, as autoridades empenharam-se em imprimir um ritmo acelerado de desenvolvimento baseado em duas políticas: foco nas pequenas e médias empresas e na tecnologia de ponta. O desenvolvimento acelerou-se, e atraídas pelos baixos custos de fabricação, salários e na força de trabalho relativamente educada dos ilhéus, as empresas japonesas e ocidentais começaram a buscar o mercado taiwanês.
As baixas taxas de juros em empréstimos e subsídios governamentais impulsionaram ainda mais o crescimento econômico e grandes investimentos em P&D propulsaram a indústria nascente de microchips. Na década de 1960, o crescimento anual do PIB real era de mais de 10,3%. Nesse momento, o PIB por paridade de poder de compra (PPP) era maior do que o da maioria das nações europeias desenvolvidas.
Um forte sentimento nativista tomou então conta da população no sentido de renegar, não a “chinesidade ancestral”, mas a diferença dos universos políticos: enquanto o Continente se engalfinhava na Revolução Cultural, a Ilha, sob a batuta do Kuomintang, prosperava. Fruto disto, as gerações mais jovens se sentiam – e se sentem cada vez mais – taiwanesas.
Só que… os crescentes custos de produção e de mão-de-obra decorrentes deste mesmo “sucesso” levaram os empresários a transferir, com o objetivo de manter competividade, suas bases de produção cada vez mais para as “zonas econômicas especiais” que as reformas econômicas de Deng Xiaoping, a partir de 1979, haviam impulsionado no Vale do Rio das Pérolas, no sul da China. E concomitantemente o Continente começou a ganhar crescente ímpeto e hoje é não somente o segundo maior PIB nominal, mas o maior PIB por paridade de poder de compra do planeta, ameaçando (se é que ainda o faz…) a hegemonia dos americanos. A imbricação econômico-comercial entre os dois chegou a tal ponto que hoje o Continente é o principal parceiro comercial da Ilha…”inimigos“ e maiores parceiros…um paradoxo que o Ocidente central não entende…
Aí entra a visita de Pelosi e sua investida missionária em favor dos valores do Ocidente “western style” e “erga omnes”, na contramão de um status quo que ela e muitos outros deste lado do planeta não entendem: ou seja, interessa, no fundo, aos dois lados do estreito preservar este “antidiálogo” até que a História os encaminhe a um desfecho…Jogo de espelhos e sabedoria multimilenar.
A meu juízo – e espero que esteja certo – deverá ocorrer o mesmo que em 1995/6, a menos que os americanos aumentem o tom: retórica exacerbada; retaliações mais radicais de Pequim na esfera comercial; exercícios militares mais agressivos; e um acordo tácito entre o Continente e a Ilha em amainarem a tempestade…isto se o Ocidente – leia-se EUA – os deixarem em paz jogando a partida cinicamente sábia de uma relação de irmandade ancestral…