ISSN 2674-8053

Xi e o mandato do céu

O que até os cascalhos do caminho sabiam: no dia 23 deste mês, os cerca de 2000 representantes dos 96,7 milhões de membros do Partido Comunista Chinês (PCC) reconduziram o Secretário-Geral e Presidente do Partido, Xi Jinping, para mais um mandato de cinco anos. Ao seu final, ele terá cumprido quinze anos no poder absoluto do Partido…e da República Popular da China.

Anteriormente, somente Mao Zedong teve tamanho protagonismo na vida dos chineses. Desde então, a tradição passara a ser o compartilhamento do poder entre a cúpula política, em uníssono. Assim foi nas gerações posteriores a ele: a do “triunvirato” Jiang Zemin, Li Peng e Zhu Rongzhi, e dos seus sucessores, Hu Jintao e Wen Jiabao. Nestas etapas anteriores, os líderes mantinham um perfil discreto, evitando o protagonismo pessoal. Este era entregue ao Partido como um todo. A República Popular avocava, então, o status de “país em desenvolvimento”, pelo qual foi admitida – com os benefícios decorrentes – na Organização Mundial do Comércio, em 2001. Muita água passou na vida política e econômica da China, desde então, e muito é devido ao protagonismo de Xi no processo.

Em seu discurso de quase duas horas, ele deixou claro que o desenvolvimento é a “prioridade máxima” para o PCC, e ressaltou o foco contínuo no “crescimento com alta qualidade”. Afirmou que a China ampliou sua influência global nos últimos cinco anos. Mencionou, também, a decisão de reprimir os movimentos em Hong Kong contrários a Pequim. Neste contexto, Xi disse que “a nova lei de segurança nacional criminalizou a dissidência de forma efetiva, levando-a a um fim abrupto”, o que ensejou “uma virada para melhor na região”. Ele exortou também a “maioria dos compatriotas taiwaneses” a manterem os vínculos entre os dois lados do Estreito de Taiwan, e culpou uma pequena minoria de agitadores – assim como agentes estrangeiros – pelas tensões: “a roda da história está-se deslocando em direção à reunificação e ao rejuvenescimento da grande nação chinesa… A reunificação completa pode, sem dúvida, ser atingida”, disse Xi, no domingo, arrancando entusiasmados aplausos dos presentes. Esta afirmação provocou imediata resposta do palácio presidencial de Taipé, o qual afirmou que “os cidadãos de Taiwan definitivamente não aceitam o princípio forjado por Pequim de “um país e dois sistemas”.

A plateia do partido endossou a posição da liderança e aprovou as mudanças na Constituição que endossam a visão política de Xi como central para o futuro da China. Estamos diante de uma Republica Popular decididamente mais assertiva… e para alguns, mais belicosa? Vamos contextualizar….

O primeiro roteiro a seguir é olhar para a história pessoal do novo líder. Quem é Xi Jinping?

Ele é filho de ninguém menos que Xi Zhongxun, líder revolucionário e parte da primeira geração de liderança da China comunista. Xi-pai foi companheiro de Mao na “Grande Marcha” e desempenhou um papel importante no processo de abertura econômica que Deng Xiaoping deslanchou no final da década de 70 do século passado. Quando então governador da província de Guandong, no sul da China, foi ele quem propôs a Deng a criação das zonas econômicas especiais (ZPE´s) que abriram o país para o mundo. Suas contribuições para a política chinesa nos anos 80 foram amplas e numerosas. Ficou conhecido por sua moderação política e pelos contratempos que enfrentou ao longo da sua carreira, entre elas as consequências das críticas que fez abertamente às ações do governo durante o incidente da Praça Tian An Men, em 1989. Por suas convicções ele foi aprisionado e expurgado diversas vezes, inclusive durante a Revolução Cultural, assim como seu filho, que foi enviado para trabalhos forçados numa comuna agrícola na província de Shaanxi. A esposa de Xi Jinping, Peng Liyuan, é uma cantora muito popular de músicas folclóricas e militares, e sua filha está estudando atualmente em Harvard sob um pseudônimo, segundo rumores. Portanto, Xi Jinping é um homem “moderno” para os padrões chineses…

À frente do Congresso e da China desde 2012, ele tem boa aprovação da população, apesar de ter recentemente enfrentado protestos contra o seu governo em razão da política de “lock down” e “Covid-zero”, que deixou o país isolado e prejudicou a economia, que registrou um baixo índice de crescimento Este bom conceito não impede que ele tenha antagonistas dentro do próprio partido, de quem busca se desvencilhar através de uma campanha anti-corrupção, que seus antagonistas consideram como uma verdadeira “caça” aos opositores, gerando a preocupação de o país voltar a ser o que era antes de 1970, quando Mao Zedong liderava absoluto. Diante deste cenário, alguns especialistas apontam que os próximos cinco anos de Xi tendem a ser de incertezas e instabilidades.

E o que leva a população a dar-lhe um apoio tão amplo?

Vários fatores, a meu ver. O primeiro a ser lembrado é o que os livros de história – e o PCC – qualificam como o resgate ao “século das humilhações”, ou seja, o século XIX, quando a orgulhosa dinastia Qing (1644 / 1912), que reinara absoluta sobre o país que até então fora a maior economia mundial, viu-se retalhada pelos colonialistas ocidentais, com os ingleses à frente, que lhe impuseram o consumo do ópio para contrabalançar uma balança de comércio deficitária para eles e que, na esteira da derrota na I Guerra do Ópio, lhe sequestraram Hong Kong, pelo Tratado de Nanquim, em 1842. Este trauma perdura desde então na psique social dos chineses e foi, inclusive, um dos fatores importantes para a ascensão dos comunistas ao poder em Pequim, em 1949. Ora, a China de hoje, cada vez mais afluente e a caminho de tornar-se a primeira potência (geo)econômica mundial, segundo os analistas, vive o ímpeto de recuperar – e ampliar para a região adjacente, e além – o poder e o prestígio que perdera. Xi cita este tema em quase todos os seus discursos.

Igualmente dominante em sua gestão é um conceito cunhado por um professor da Academia de Defesa da China, Liu Mingfu no seu livro “China Dream”/Sonho da China, que no primeiro parágrafo do seu primeiro capítulo alinha o que é este sonho. Em inglês, como consta: “but what does it mean for China to become the world´s leading nation? First it means that China´s economy will lead the world. On that basis, it will make China the strongest country in the world. As China rises to the status of a great power in the 21st century, it´s aim is nothing less than the top – to be the leader of the modern global economy”…Xi repete as frases deste livro em quase todos os seus discursos igualmente. Ambicioso, certamente…? Ingênuo, talvez?…

Isto sem mencionar o sonho de retraçar a antiga Rota da Seda através do projeto ” Belt and Road Initiative”, desta vez interligando também através da tecnologia três continentes, Ásia, Europa e África, revivendo e dinamizando a rota que fez a glória e a fortuna da China ao longo dos séculos.

Para tanto, o governo chinês já está se mobilizando: em maio de 2016, o Conselho de Estado anunciou um plano “Made in China 2025”, também chamado de “China Manufactured 2025”, destinado a atualizar, consolidar e equilibrar a indústria manufatureira nacional, transformando-a numa potência global capaz de influenciar padrões, cadeias de suprimento e impulsionar a inovação, em nível planetário, com base na ideia de que o mundo está passando pela quarta revolução industrial e que cabe a ela liderar este processo. Novamente, ambicioso…ingênuo…?

Todas estas aspirações (…devaneios?…) encontram seu lastro civilizacional numa teoria/filosofia política de fundo confucionista que foi cunhada pela dinastia Zhou (séc. IX/X AEC), que incorpora a ordem natural à vontade do universo, que concede o mandato a um governante justo, o “Filho do Céu”. Sua queda é interpretada como a indicação de que era indigno e, em consequência, perdera o mandato. Este princípio norteou desde sempre a ascensão e a queda de todas as dinastias chinesas. E ainda é a pedra angular da convivência entre líderes e subordinados na China contemporânea. Ora, a população nunca teve tão alta qualidade de vida, para os seus padrões. Basta dizer que no ano passado o governo anunciou ter erradicado a miséria absoluta no país. Retórica…, ou um feito extraordinário, diante de uma população de 1,4 bilhão de indivíduos?…

Ou seja, ainda que haja dissidências e acusações contra a liderança de Pequim, e de seu líder supremo, fato é que a população, em sua enorme maioria, está satisfeita com seus governantes, apesar da falta de liberdade, etc. Ou seja, Xi desfruta, por ora, do Mandato do Céu. Os valores – liberdade, direitos humanos “western style”, etc. – que são tão caros para nós, no Ocidente, relativizam-se no caso dos chineses, pragmáticos e com um horizonte histórico infinitamente maior. O que nos parece um anátema é para eles – por ora, pelo menos – um degrau a ser alcançado no futuro, quando a afluência que ora desfrutam lhes pareça insuficiente para gozar a vida em sua plenitude. Quando será?

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.