ISSN 2674-8053

Lula, a Rússia, a Ucrânia e a Otan

© Ricardo Stuckert/PR

Radicalizando a polêmica…

Sorry…este texto é longo e controverso…Refleti muito até decidir escrever sobre as afirmações do Presidente Lula a respeito da guerra da Ucrânia. Primeiramente porque me comprometi a me manifestar somente sobre a Ásia, que é a “minha praia”… “Segundamente”, porque sei que estou “cutucando o boi com vara curta”… Mas a minha consciência me leva a tentar analisar da maneira mais isenta possível de qualquer viés “ideológico” (?) as declarações que Lula tem feito a respeito do tema.

A grande maioria dos indivíduos “bem pensantes” concorda em que o que está acontecendo naquela região é uma tragédia inominável…Também penso assim…Mas, para a maioria deles, a afirmação do Presidente Lula de que “a Ucrânia também é responsável pelo que está acontecendo” é, no mínimo, descabida. É o que afirma o analista Rubens Abater no artigo “Lula insiste em afirmar que Ucrânia também é responsável por invasão russa”, que o Estadão publica hoje. Ele não faz mais que refletir o julgamento da maioria das “pessoas de bem”… . Li opiniões semelhantes até de outros analistas que respeito.

Gostaria de também “meter o meu bedelho” no assunto. Faço isto baseado não só no que tenho escutado e lido, mas na minha vivência de dezesseis anos pela Ásia, inclusive de um período em Astana, no Cazaquistão, na Ásia Central, ex-República Soviética assim como a Ucrânia.

Reflito, pois, baseado em experiência de campo….

 Tanto o Cazaquistão quanto a Ucrânia são, na mais absoluta realidade, países-infantes: eles “nasceram” quando a URSS se desintegrou em 1991. Ambos, portanto, assim como as outras ex-repúblicas soviéticas, têm apenas trinta e dois anos de existência como países independentes. Ou seja, são Estados infantes, em formação, e que até recentemente eram dirigidos por ex-agentes da KGB (alguns ainda são), assim como a maioria das suas burocracias. Ainda não se encontraram no papel de independentes, ou seja, são “personagens em busca de um autor”, como diria Pirandello… Notei isto quando servi em Astana. Entretanto, são concomitantemente sociedades – e civilizações – muito antigas.

A Ucrânia, no caso, faz parte do mundo eslavo e cristão-ortodoxo. Neste caso, em qual lado do planeta os ucranianos se encaixariam?…Este é, parece-me, um aspecto fundamental para se entender o que os russos consideram como sua “área de influência” (ou feudo, para os mais radicais). Recorrendo à História, verificamos que o berço da Rússia foi o Principado de Kiev, cuja formação data de 1132 D.C. Antigas sagas chamam o território de “Gardariki” (Terra das cidades), posteriormente conhecido como “Pequena Rússia” (Ucrânia) e “Grande Rússia”. Segundo elas, o país estava dividido em três partes principais: Holmogordo (Novogárdia Magna); Conugordo (Kiev); e Palteskja (Polácia).  As terras da região de KIev eram consideradas as melhores de todo o país. Em 988 D.C a região adotou o cristianismo, com o batismo dos habitantes de Kiev por São Vladimir. Alguns anos depois foi introduzido o primeiro código comum de leis, o chamado de “Russkaya Pravda”. No czarismo russo, a palavra Rússia substituiu o antigo nome Rus’ em documentos oficiais, embora os nomes Rus’ e “terra russa” – a nomenclatura mais típica no século XVII – ainda fossem comuns e sinônimos para todo o território; muitas vezes apareciam na forma de “Grande Rússia” (em russo: Великая Россия царствие). É por esta e outras razões que os russos consideram a Ucrânia como seu “espaço civilizacional”. Para Moscou, ela, o Cazaquistão, e todas as ex-repúblicas soviéticas fazem parte de um grande universo conceitual comum, ainda que alguns deles, como a Polônia, a Hungria e a República Tcheca, por exemplo, lhe tenham escapado. Presenciei esta força quando servi em Astana, em 2013. Acredito que só os que convivemos com esta realidade sabemos avaliar o peso do fator “Mãe Rússia/ “Ma Vlast” para a região.

Agora, tomemos o avião, ou a transiberiana, e nos dirijamos no tempo à Europa Ocidental, ao dia 4 de abril de 1949, quando foi criada a “Organização do Tratado do Atlântico Norte” (OTAN/NATO), a aliança militar intergovernamental baseada no Tratado do Atlântico Norte. Por ele, constituiu-se um sistema de defesa coletiva, através do qual os Estados-membros concordaram  mutuamente em reagir em uníssono a ataques por qualquer entidade externa à organização. A OTAN, que era pouco mais que uma associação política até à Guerra da Coreia, a partir dela transformou-se numa estrutura militar integrada. Em contraposição, a União Soviética, juntamente com os países socialistas da Europa Oriental formaram, em 1955, o Pacto de Varsóvia. Seu objetivo era proteger o regime socialista-marxista e expandir sua área de influência. A “Guerra Fria” que se instalou então alimentou a rivalidade acirrada entre os dois blocos. E nesse contexto, o compromisso da OTAN passou a ser, como sabemos, com a defesa do Ocidente e dos conceitos e valores do capitalismo contra o comunismo soviético.

Mas o tempo passou, e na medida em que desde a queda da URSS não existe mais, efetivamente – a meu ver –  o “inimigo comunista” na ordem mundial contemporânea, o termo tornou-se um rótulo esvaziado do seu sentido original. Surgiu, assim,, a necessidade de se redefinir o papel da OTAN: seu objetivo passou então a ser garantir a política de segurança dos países que a integram. Isto significa, em última instância, a validação e  imposição dos conceitos e valores político-estratégicos do Ocidente, que, no entender de Vladimir Putin, arriscam desfigurar aqueles multisseculares da “mãe Rússia” e criam a ameaça da gravitação para o oeste.

Mas, parece necessária, em última análise, a formação dessa barreira de contenção neste século da interdependência globalizante? Nós, diplomatas mais antigos, convivemos nas décadas de 70/80 com a ameaça onipresente do holocausto nuclear e da frágil administração da “détente” pelas duas superpotências de então, até que a dissolução da União Soviética, em 1991, tornou de certa forma obsoleto este objetivo primordial. A OTAN passou então a defender os valores das “democracias ocidentais”. Mas quais seriam estes valores, e qual é este Ocidente: o “central” – Europa Ocidental, América do Norte e (neste caso) o Japão – que de certa forma estabeleceu padrões  e parâmetros “erga omnes” ? Será que este “Ocidente” – no que este termo possa significar – e o resto do planeta compactuam com os mesmos referenciais e valores? Vivi em 11 países da Ásia, e posso afirmar com convicção que eles não são intercambiáveis, e em muitos casos, até antagônicos. Quem tem razão?… Pedir a um brasileiro – ibérico miscigenado – por exemplo, que aceite como corretas e absolutas as razões das invasões das tropas da OTAN no Iraque, Líbia ou Afeganistão, e as consequências trágicas que acarretaram, parece-me fora de qualquer sentido, a não ser no caso de “conversão ideológica”  (sorry…), longe do que somos e do que acreditamos que seja o nosso lugar e papel no mundo…

Aí entra o Presidente Lula… Ele tem sido enfático em salientar o compartilhamento da culpa – e responsabilidade – entre os dois vizinhos. Por isto, a imprensa, parte da opinião pública e alguns países o têm acusado de “meter o bedelho onde não deve”.  Há uma certa razão nisto: de fato, a guerra da Ucrânia, “so far”, está longe da(s) nossa(s) realidade(s), a não ser pelas consequências que acarreta para a nossa economia. E acredito que tampouco temos cacife para liderar um movimento de pacificação como Lula quer (remember o caso do Irã?…). Mas não lhe falta razão, a meu ver, quando afirma que a Ucrânia , pelo seu “namoro” com a OTAN, tem também responsabilidade pelo que está ocorrendo. Lembremo-nos de que a Rússia só aguçou a sua beligerância quando sentiu que a organização militar ocidental ameaçava invadir o seu feudo. A Ucrânia, sabemos, é para Putin e os russos o Estado-tampão contra o espraiamento do “ocidentalismo”. E foi então que ele partiu para uma cruzada ensandecida e contrária aos princípios mais básicos do que seja a convivência entre as nações e os “direitos humanos”, estes sim universalmente aviltados quando uma população se vê ameaçada e expatria seus filhos para refúgios mundo afora! Trágico…

No que vai dar tudo isto? Há muito mais em jogo que esta simples análise pode abordar, como a questão dos territórios ocupados, por exemplo. Haverá um “grand finale”, ou sequer “finale” no curto ou médio prazos? Como a sociedade internacional vai reagir? De forma mais atabalhoada que efetiva, como tem sido? Talvez a “Declaração Conjunta” dos Presidentes do Brasil e da China ao final da visita que Lula acaba de realizar àquele país possa ser um roteiro possivel. Segundo ela “as partes afirmam que diálogo e negociação são a única saída viável para a crise na Ucrânia, e que todos os esforços conducentes à solução pacífica da crise devem ser encorajados e apoiados”…sem contundência e sem “parti pris”.

Digo sempre aos meus alunos que nas relações internacionais, como na própria vida, nada é preto e nada é branco absoluto. É nas gradações do cinza que elas – e a própria vida – acontecem.

To be continued…infelizmente…

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.