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Crise ecológica e a reconfiguração da identidade territorial

Nosso vínculo com a terra é antigo e profundo. Ao longo da história, a identidade de inúmeros povos foi tecida a partir do território, do clima e dos ciclos naturais que moldaram a vida, as tradições e a cultura de cada comunidade. Hoje, contudo, vivemos uma crise ecológica que ameaça diretamente esse elo, desafiando não apenas a sustentabilidade do meio ambiente, mas também a essência das identidades territoriais que se formaram ao longo de séculos. Em regiões onde as tradições estão intrinsecamente ligadas ao território, como em comunidades indígenas africanas e asiáticas, a degradação ambiental é vivida como uma ferida coletiva.

Na África, onde diversas etnias e culturas se desenvolvem em paisagens específicas — do deserto do Saara às florestas tropicais do Congo —, o território é mais do que um local de habitação. Ele é sagrado, carregado de significados e memória, e molda profundamente a relação das pessoas com sua identidade cultural. Contudo, a desertificação e a degradação das terras férteis forçam famílias e comunidades inteiras a migrarem em busca de melhores condições de vida. Esse deslocamento muitas vezes quebra o elo entre as gerações, distanciando os mais jovens dos costumes ancestrais que dependiam do solo para serem vividos plenamente. Uma prática tradicional que exige determinada planta ou o acesso a um rio específico perde seu sentido fora de seu ambiente natural, e, com isso, fragmenta-se também a identidade cultural que depende de tais elementos.

No sudeste asiático, particularmente em ilhas como as Filipinas e o Vietnã, a elevação do nível do mar e as inundações recorrentes forçam uma adaptação constante, ameaçando povoados costeiros e práticas agrícolas transmitidas por gerações. O arrozal, por exemplo, não é apenas uma paisagem, mas um símbolo de subsistência, de organização comunitária e de espiritualidade. O avanço das águas do mar sobre as terras agricultáveis representa mais do que uma perda econômica; ele representa o desaparecimento de um modo de vida que forma a identidade das comunidades rurais asiáticas. Quando uma família precisa abandonar a terra de seus ancestrais para sobreviver em centros urbanos, leva consigo apenas fragmentos de sua cultura, deixando para trás muito do que define sua identidade.

No ocidente, a relação com o território passou por mudanças ao longo dos séculos, especialmente com o processo de urbanização. No entanto, para comunidades agrícolas e indígenas da América Latina, por exemplo, o impacto da crise ecológica ainda representa uma ameaça direta à identidade e ao pertencimento territorial. A extração mineral, o desmatamento e a destruição de ecossistemas naturais por interesses comerciais põem em risco o conhecimento tradicional dessas comunidades. Para elas, o território é visto como um ser vivo que oferece sustento e sabedoria, e sua destruição é vivida como uma violação que ecoa nas memórias e na identidade coletiva.

Essa crise ecológica global nos obriga a refletir sobre como a identidade humana é inseparável do ambiente físico. O que acontece quando somos despojados de nossas raízes territoriais? Quando a terra que nutre e estrutura nossas tradições é ameaçada, estamos não apenas perdendo um recurso natural, mas também partes fundamentais de quem somos. A reconfiguração da identidade territorial é um desafio profundo e urgente, que exige de nós uma nova relação com a natureza — uma que respeite o território como parte da nossa própria identidade e não apenas como um bem de consumo. Em meio a um planeta em transformação, fica a questão: conseguiremos preservar as culturas enraizadas na terra enquanto ela própria sofre os impactos de nossas ações?

Rodrigo Cintra
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X

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