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A disputa por hegemonia e a emergência de ordens alternativas: o mundo já não é unipolar

Introdução: a queda do império invisível

Durante grande parte do pós-Guerra Fria, o mundo foi estruturado em torno de uma convicção silenciosa: os Estados Unidos eram, simultaneamente, a maior potência militar, econômica, tecnológica e cultural do planeta — e os guardiões da ordem internacional liberal. Sua liderança era vista não apenas como inevitável, mas como desejável, pois se imaginava que seus interesses coincidiram, em grande medida, com os valores universais da democracia, dos direitos humanos e do livre mercado. O multilateralismo funcionava sob uma lógica peculiar: era, muitas vezes, unilateralismo com legitimidade compartilhada. A unipolaridade americana não era apenas um fato geopolítico — era um estado mental.

Esse arranjo, no entanto, começou a se dissolver. De forma discreta nos anos 2000, e de modo acelerado a partir da década de 2010, o mundo passou a testemunhar a erosão dessa centralidade. Outras potências — com destaque para a China e a Rússia — passaram a desafiar, em diferentes frentes, a hegemonia norte-americana. Além disso, diversos países do chamado Sul Global passaram a questionar a legitimidade e a eficácia das instituições multilaterais dominadas pelo Ocidente. A crise da unipolaridade abriu espaço para novas alianças, fóruns paralelos, acordos regionais e visões concorrentes sobre a ordem mundial.

Esse processo não tem sido pacífico. Ao contrário, é marcado por disputas estratégicas, choques culturais, competição tecnológica e reconfigurações diplomáticas. Trata-se de uma transição de poder que ainda está em curso, mas cujos sinais são cada vez mais evidentes. O mundo já não gira em torno de um centro único. A ordem liberal, que pretendia ser global, encontra hoje resistência, contestação e alternativas.

Este artigo propõe uma análise das dinâmicas em torno da disputa por hegemonia global e da emergência de ordens alternativas. O foco não está apenas nos atores clássicos — como EUA, China e Rússia —, mas também nas transformações que ocorrem nas periferias do sistema, nos rearranjos institucionais e nos novos imaginários políticos que tentam substituir o que se encontra em crise. A pergunta que nos orienta é clara: estamos diante do colapso de uma ordem sem que outra esteja pronta para substituí-la?

A era da unipolaridade

O fim da Guerra Fria não apenas marcou o colapso da União Soviética — ele selou, ao menos simbolicamente, a supremacia dos Estados Unidos como potência incontestável no sistema internacional. Sem adversário geopolítico à altura, Washington emergiu como o centro nervoso do mundo, com influência decisiva sobre a economia global, a segurança internacional, as inovações tecnológicas e o discurso normativo que definia o que era legítimo ou ilegítimo em matéria de governança. Era a era da unipolaridade — um momento histórico raro, em que uma única potência exerce primazia quase absoluta, sem precisar disputar sua posição em campos de batalha convencionais.

Essa hegemonia não era apenas militar. Os Estados Unidos possuíam bases em todos os continentes, sim, mas seu poder era também financeiro, cultural e institucional. O dólar consolidou-se como moeda de referência mundial; Wall Street tornou-se o centro do sistema financeiro global; universidades americanas atraíam as elites intelectuais do planeta; e Hollywood exportava padrões culturais com alcance planetário. Paralelamente, os organismos internacionais — como o FMI, o Banco Mundial, a OMC e até mesmo a ONU — operavam, na prática, sob forte influência dos interesses americanos, mesmo quando se apresentavam como fóruns neutros e universais.

Do ponto de vista político, a unipolaridade foi acompanhada por uma narrativa de universalização da democracia liberal. A chamada “terceira onda da democratização” levou diversos países do Leste Europeu, da América Latina e da África a adotarem sistemas multipartidários e eleições competitivas, frequentemente sob incentivo e supervisão ocidentais. A ideia era que a abertura política, aliada à liberalização econômica, constituiria um caminho irreversível para a integração global. Esse projeto, embora idealizado como benéfico, estava ancorado em uma hierarquia implícita: os Estados Unidos seriam não apenas o polo mais poderoso, mas também o modelo normativo a ser seguido.

Durante os anos 1990 e o início dos anos 2000, essa estrutura parecia sólida. Mesmo ações unilaterais — como a intervenção militar na Iugoslávia ou, mais tarde, no Afeganistão — eram, em geral, legitimadas pelo discurso de proteção de civis ou combate ao terrorismo, frequentemente com algum grau de apoio ou omissão da comunidade internacional. A Guerra do Iraque, em 2003, representou o primeiro grande abalo nessa lógica, ao expor o uso seletivo e instrumental do multilateralismo. Ainda assim, os Estados Unidos continuaram a exercer sua influência de maneira decisiva, com poder de veto informal sobre os rumos do sistema internacional.

A unipolaridade foi também, paradoxalmente, um período de alta confiança nos mecanismos multilaterais — justamente porque, ao operarem sob hegemonia americana, essas instituições refletiam a correlação de forças dominante. O multilateralismo, nesse contexto, funcionava como um instrumento de gerenciamento da hegemonia, mais do que como um espaço de contestação efetiva. A liderança dos EUA era aceita, mesmo que com críticas, porque não havia alternativa viável. A ordem liberal parecia não ter rival à altura.

Mas o que parecia estabilidade era, na verdade, um equilíbrio assimétrico e instável. A hegemonia americana dependia de uma série de condições que, ao longo do tempo, começaram a se deteriorar: a expansão da China, a reorganização estratégica da Rússia, a emergência de polos regionais, o desgaste das instituições internacionais, o crescimento das desigualdades globais e a crise interna da própria democracia americana. Com o tempo, a unipolaridade começou a ceder, e com ela, a legitimidade da ordem que sustentava.

É nesse contexto que se abre espaço para novas disputas de hegemonia — e para a construção de ordens alternativas que desafiam, corrigem ou substituem a narrativa liberal-ocidental. Esse processo, como veremos, está longe de ser linear. Ele é fragmentado, ambíguo, e ainda em pleno desenvolvimento.

Ascensão de novos atores

Enquanto a hegemonia dos Estados Unidos começava a mostrar sinais de desgaste, novos atores emergiram no cenário internacional não apenas como potências regionais, mas como propositores de modelos alternativos de poder, desenvolvimento e governança. Essa ascensão não se deu por meio de confrontos militares diretos, como nas disputas hegemônicas do passado, mas por meio de estratégias de influência econômica, diplomática, tecnológica e institucional. O centro de gravidade do sistema internacional começou a se deslocar — silenciosa, mas consistentemente — para além do Ocidente.

A China é o exemplo mais evidente e estruturado desse movimento. Combinando um crescimento econômico acelerado com uma política externa assertiva, Pequim passou de “fábrica do mundo” a protagonista global em menos de três décadas. O projeto da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative), lançado em 2013, simboliza essa ambição: uma rede de investimentos em infraestrutura, energia e logística que conecta Ásia, Europa, África e América Latina. Mais do que uma expansão comercial, trata-se de uma arquitetura paralela de influência geoeconômica e, potencialmente, geopolítica.

Além disso, a China tem atuado para criar instituições próprias, fora do eixo tradicional da ordem liberal. O Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), por exemplo, é uma alternativa ao Banco Mundial; o impulso à desdolarização nas transações comerciais reflete o desejo de autonomia monetária; e o crescente investimento em tecnologia e inovação — especialmente em inteligência artificial, 5G e energia limpa — busca posicionar o país como potência do século XXI, não apenas em volume, mas em vanguarda.

A Rússia, embora com capacidades econômicas limitadas, tem desempenhado um papel estratégico como potência revisionista. Desde a intervenção na Geórgia (2008) até a anexação da Crimeia (2014) e a guerra na Ucrânia (a partir de 2022), Moscou vem desafiando abertamente a ordem de segurança europeia estabelecida no pós-Guerra Fria. Sua atuação na Síria e em outros conflitos regionais mostra a disposição de usar poder militar para afirmar sua presença e seus interesses — mesmo diante de condenações multilaterais. A Rússia não propõe uma nova ordem universal, mas sua prática sistemática de vetar, bloquear e romper regras existentes já configura um processo ativo de desestabilização da hegemonia ocidental.

Fora do eixo sino-russo, surgem também polos intermediários de influência, como a Índia, a Turquia, o Irã, a África do Sul e até países latino-americanos como o Brasil. Esses Estados não seguem um modelo único, mas compartilham o desejo de autonomia estratégica, de diversificação de alianças e de maior voz nas decisões globais. A criação e o fortalecimento de fóruns como os BRICS, a Organização de Cooperação de Xangai, a União Africana e outros espaços regionais refletem a busca por novas formas de articulação e representação internacional.

Esses novos atores não apenas desafiam a hegemonia americana — eles desafiam os valores e as premissas da ordem liberal. A democracia liberal não é mais vista como único modelo legítimo. A liberdade de mercado não é mais sinônimo automático de desenvolvimento. A proteção dos direitos humanos, a soberania e a intervenção internacional são reinterpretadas sob lentes nacionais e culturais diversas. A pluralidade de visões passa a coexistir com a fragmentação institucional. Não há, por ora, uma nova ordem global coerente — mas há, cada vez mais, vários sistemas em competição.

A ascensão desses novos atores não implica necessariamente um colapso imediato da ordem anterior. Mas representa uma transformação de fundo: o mundo já não reconhece um centro indiscutível de poder. A unipolaridade cede espaço à multipolaridade contestada, onde diversas potências convivem, competem, cooperam seletivamente — e, às vezes, entram em confronto aberto.

É nesse terreno incerto que se desenrola o presente da política internacional. E é nesse terreno que a legitimidade da ordem liberal será cada vez mais posta à prova.

O declínio do modelo ocidental

O poder não reside apenas na força militar ou na capacidade econômica — ele também se sustenta na atratividade de um modelo, na capacidade de oferecer uma visão de mundo que mobilize adesão, inspiração e legitimidade. Durante décadas, o Ocidente não apenas dominou as instituições internacionais, mas foi também o portador de uma narrativa universalizante: a de que a democracia liberal, a economia de mercado e os direitos humanos constituíam o destino natural das sociedades modernas. Esse modelo não era apenas promovido — era considerado inevitável.

Hoje, essa convicção encontra-se profundamente abalada. O modelo ocidental — entendido aqui como o conjunto de instituições, valores, práticas e imaginários associados à Europa Ocidental e aos Estados Unidos — enfrenta uma crise múltipla de legitimidade, eficácia e coerência. Tanto no plano interno quanto externo, sua autoridade vem sendo questionada.

Internamente, o próprio funcionamento das democracias liberais se tornou objeto de ceticismo. A polarização extrema, o colapso da confiança nas instituições, a ascensão de movimentos iliberais e a captura da política por interesses econômicos concentrados expuseram as fragilidades da promessa democrática. A incapacidade de lidar com desigualdades persistentes, crises migratórias e transformações tecnológicas gerou um ambiente de frustração generalizada. Nos Estados Unidos, os episódios de violência política, a negação dos resultados eleitorais e o enfraquecimento de normas democráticas básicas colocaram em xeque a credibilidade do país como referência global de governança.

Externamente, o discurso ocidental é visto com suspeita e ressentimento por muitas nações. O uso seletivo dos direitos humanos, as intervenções militares unilaterais, o apoio a regimes autoritários quando conveniente, e o histórico colonialista e imperialista de várias potências do Norte global enfraqueceram a pretensão universalista do Ocidente. Em vez de serem percebidos como valores compartilháveis, democracia e direitos humanos passaram, em diversos contextos, a ser vistos como instrumentos de dominação política e cultural.

A emergência de modelos alternativos, como o “capitalismo autoritário” chinês, reforça essa percepção. Pequim apresenta sua trajetória de desenvolvimento como uma prova de que é possível alcançar crescimento econômico, redução da pobreza e projeção internacional sem adotar as normas políticas do Ocidente. Essa narrativa ressoa especialmente entre países do Sul Global, que muitas vezes veem o modelo ocidental como associado à austeridade, à ingerência externa e à dependência financeira.

O enfraquecimento do modelo ocidental também se manifesta na crise das instituições internacionais que ele ajudou a fundar. A ONU, a OMC, o FMI, o Banco Mundial e outros organismos vêm sendo questionados por sua falta de representatividade, por sua lentidão decisória e por sua incapacidade de responder aos desafios contemporâneos. Países emergentes cobram reformas que nunca se concretizam. Enquanto isso, constroem arranjos paralelos que refletem suas próprias prioridades e visões de mundo.

Culturalmente, o prestígio simbólico do Ocidente também declina. A internet, as redes sociais e o fluxo descentralizado de informação permitiram a emergência de narrativas alternativas, que desafiam a hegemonia midiática ocidental. Os grandes jornais, as universidades e os centros de pensamento do Atlântico Norte já não monopolizam o debate global. Vozes do sul global, de tradições não ocidentais, de comunidades antes silenciadas, passaram a disputar espaço e autoridade intelectual.

O resultado é um mundo cada vez mais pluricêntrico, em que a autoridade do Ocidente já não é presumida, e sua legitimidade precisa ser reconquistada. Isso não significa que o modelo liberal-democrático tenha deixado de existir ou de ser relevante. Mas significa que ele deixou de ser exclusivo — e passou a ser apenas uma entre várias formas possíveis de organizar a vida coletiva.

Essa perda de centralidade altera profundamente o modo como a política internacional é conduzida. As negociações se tornam mais fragmentadas, os acordos mais difíceis, os conflitos mais assimétricos. E, sobretudo, a ideia de uma ordem global regida por princípios universais perde força diante da multiplicidade de interesses, valores e projetos concorrentes.

Conclusão: multipolaridade ou caos?

A transição em curso na ordem internacional não é apenas uma mudança na distribuição de poder entre Estados. Trata-se de uma reconfiguração profunda das formas de autoridade, legitimidade e sentido que estruturavam o sistema global desde o fim da Segunda Guerra Mundial — e, com mais intensidade, desde o fim da Guerra Fria. A unipolaridade, ancorada na hegemonia dos Estados Unidos e na narrativa da ordem liberal, cede espaço a uma realidade mais fluida, instável e contestada.

O que está emergindo ainda não é uma nova ordem — mas tampouco é uma simples ausência de ordem. O mundo vive um estado de multipolaridade incerta, no qual vários polos de poder convivem, mas sem um consenso claro sobre regras, valores e mecanismos de regulação coletiva. Em vez de uma nova hegemonia, assistimos à proliferação de sistemas paralelos, alianças pontuais, fóruns regionais e arranjos informais que buscam suprir, com diferentes graus de sucesso, o vazio deixado pelo declínio da ordem liberal.

Essa multipolaridade, embora possa sugerir um equilíbrio mais democrático entre as nações, traz também riscos significativos. Em um sistema sem liderança reconhecida e sem mecanismos de arbitragem confiáveis, os conflitos tendem a se resolver pela lógica da força, e não pela da negociação. A competição entre potências — por influência, recursos, tecnologias e esferas de valor — pode gerar instabilidades prolongadas, guerras por procuração, colapsos institucionais e desintegração de regimes normativos essenciais, como os de direitos humanos ou de proteção ambiental.

O desafio histórico que enfrentamos é o de evitar que a multipolaridade de fato se transforme em um novo tipo de caos, no qual o poder substitui o direito, e a fragmentação substitui a cooperação. Isso exigirá uma nova geração de lideranças capazes de reconhecer a pluralidade do mundo contemporâneo, sem abrir mão da construção de pactos mínimos de convivência. Será necessário reformar as instituições existentes, criar novos espaços de deliberação global e imaginar formas de governança que não reproduzam as assimetrias do passado, mas que também não neguem a interdependência inescapável do presente.

A disputa por hegemonia é, portanto, apenas a superfície visível de um movimento mais profundo: a disputa por sentido, por legitimidade e por imaginação política global. Não se trata apenas de quem manda, mas de qual história será contada sobre o mundo que queremos habitar. A ordem liberal, com todas as suas falhas, ofereceu uma narrativa universalizante. Seus sucessores, por ora, oferecem fragmentação e competição.

A pergunta que se impõe é se conseguiremos, a partir dessa fragmentação, criar uma nova ordem que seja, ao mesmo tempo, mais justa, mais plural e mais funcional — ou se seguiremos em um mundo sem centro, onde cada potência joga seu próprio jogo, e a humanidade, como um todo, perde o tabuleiro.

Apresentação da série

A presente série de artigos busca compreender o colapso da ordem internacional liberal a partir de uma perspectiva crítica, histórica e multidimensional. Ao invés de se limitar à análise pontual de eventos contemporâneos, os textos propõem uma leitura estrutural dos processos que levaram à crise do multilateralismo, à ascensão de lideranças populistas e à emergência de novas configurações de poder global. Através de seis ensaios interligados, abordam-se as principais fraturas que desestabilizam o modelo liberal: a perda de legitimidade das instituições internacionais, as contradições internas das democracias liberais, o retorno do nacionalismo e da desglobalização, a disputa por hegemonia entre potências emergentes, a crise do discurso universalista e, por fim, a figura de Donald Trump como expressão simbólica desse esgotamento histórico. O conjunto dos textos fornece um panorama abrangente dos desafios contemporâneos à ordem internacional, contribuindo para um debate mais profundo sobre os rumos possíveis da política global no século XXI.

Títulos dos artigos da série

  1. A crise das instituições multilaterais: erosão da confiança e perda de legitimidade
  2. As contradições internas das democracias liberais: quando a promessa vira ressentimento
  3. A desglobalização e o retorno do nacionalismo: o fim da era da abertura?
  4. A disputa por hegemonia e a emergência de ordens alternativas: o mundo já não é unipolar
  5. A crise de valores e do discurso universalista: quando o mundo rejeita a fala do centro
  6. Donald Trump como sintoma: o desmonte da ordem liberal e a reconfiguração do poder global

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