
A centralidade da inteligência artificial generativa — e dos dados que a alimentam — está emergindo como peça-chave não apenas da economia digital, mas da geopolítica mundial. A capacidade de treinar grandes modelos com vastas bases de dados, de operar centros de processamento de alta potência e de definir os padrões éticos e regulatórios dessa nova tecnologia está cada vez mais associada à soberania nacional e à influência global. Pesquisas recentes apontam que a chamada “IA generativa” já se tornou um fator geopolítico — moldando acesso, desigualdades e controle.
Diante disso, para países do Sul Global, o risco é duplo: permanecer como consumidores ou meros receptores de tecnologias definidas fora, ou construir agora capacidades para participar ativamente da definição das regras do jogo. Se continuarem à margem, a estrutura de dependência tecnológica se aprofunda, fragilizando o futuro. Ao mesmo tempo, emerge a oportunidade de desenhar uma alternativa de ordem internacional que inclua autonomia tecnológica, cooperação entre países em desenvolvimento e maior protagonismo na governança digital. A seguir, três ângulos-chave dessa questão.
A democracia da inovação e da governança tecnológica é hoje uma questão central. Muitos países ainda veem grande parte da IA e dos dados sendo dominados por poucos atores — sobretudo no Norte Global — com consequências que vão além da economia: refletem quem define os padrões, os valores, o que é considerado “seguro” ou “ético”. Pesquisas destacam que a adoção de IA nas economias do Sul está aquém de seu potencial — por exemplo, somente 3 % dos benefícios projetados de IA deverão retornar à América Latina, e 8 % ao conjunto de África, Oceania e outras partes da Ásia.
Para reverter isso, é necessário que países em desenvolvimento participem de modo ativo em:
- definição de padrões técnicos e éticos de IA;
- regulamentação de fluxos de dados transfronteiriços e transferência de tecnologia;
- operações de infraestrutura local (data‑centers, redes, cloud) que evitem entrega passiva aos fornecedores externos. Exemplos orientais mostram esse movimento: na Índia, África do Sul, Egito e outros, instituições estão repensando a IA não como simples adoção de modelos globalizados, mas como adaptação às línguas locais, demandas específicas e contextos culturais. Já no âmbito regulatório, diferentes regiões (EUA, União Europeia, países asiáticos) estão adotando abordagens distintas — o que torna a harmonização internacional mais complexa, mas também oferece espaço para o Sul impor visões alternativas.
Quando a tecnologia, os modelos, os dados e os padrões são definidos e controlados por um pequeno conjunto de países ou corporações, as relações tecnológicas reproduzem lógicas coloniais: o Sul torna‑se consumidor, fornecedor secundário de dados ou mão‑de‑obra, mas sem protagonismo na arquitetura da tecnologia. Essa “colonização tecnológica” não está apenas no hardware ou no software, mas nas normas, na infraestrutura e no poder de definir categorias de valor.
Por exemplo, hospedar um data‑center nacional não é apenas operação econômica: trata‑se de resiliência digital. Países que dependem de conectividade estrangeira ou de servidores externos enfrentam risco de vulnerabilidade em crises — o simples fato de possuir centros de dados próprios pode mudar a correlação de forças. Em paralelo, exportações de chips e controles tecnológicos se tornaram instrumentos geopolíticos: quando países que dependem de fornecedores externos são excluídos ou restritos, sua autonomia tecnológica é diretamente afetada.
Esse cenário se soma à questão de que os modelos de IA dominantes refletem valores, línguas, visões de mundo dos países que os produzem, o que pode marginalizar culturas, idiomas e valores de outras regiões. Sem infraestrutura, talento ou dados próprios, essas regiões correm o risco de serem moldadas pelas tecnologias definidas externamente.
Diante da dupla urgência de autonomia e de participação na governança, surge uma pista promissora: a formação de blocos tecnológicos do Sul — alianças entre países em desenvolvimento para cooperação, capacitação mútua, infraestrutura compartilhada, dados locais e definição conjunta de padrões. Esses blocos podem atuar como contrapeso à lógica unilateral dos grandes polos tecnológicos.
Alguns exemplos já aparecem: iniciativas de código aberto, esforços regionais para criar modelos de IA adaptados a idiomas e contextos locais, e até propostas de novas organizações internacionais para a IA, onde o Sul tenha voz maior. A cooperação pode ocorrer em três dimensões:
- compartilhamento e construção de infraestrutura (centros de dados, redes, nuvem local);
- desenvolvimento de talento e pesquisa local em IA e dados, com foco nas realidades regionais;
- definição de governança conjunta: regras de dados, transferência tecnológica, ética e padrões. Se países do Sul unirem forças, podem ganhar escala e influência suficiente para negociar melhor com grandes fornecedores tecnológicos, criar alternativas ao domínio dos grandes players e assegurar que suas realidades sejam contempladas nas tecnologias do futuro.
A governança da IA, dos dados e da infraestrutura digital é hoje uma arena de poder internacional que vai muito além da tecnologia pura: envolve soberania, valores, acesso e participação. Para os países que até agora têm sido periféricos nesse universo, a alternativa não é apenas adotar — é participar, co‑definir e cooperar. A construção desta nova ordem tecnológica, com real autonomia e justiça digital, depende de que o Sul Global assuma não o papel de espectador, mas de ator estratégico.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
