
A China do século XXI está em guerra — não apenas por recursos, influência ou rotas comerciais, mas por narrativas. Em meio à sua ascensão como potência global, o governo chinês vem investindo pesadamente em uma reconstrução da história que reforce seu projeto político e sua legitimidade internacional. Esse nacionalismo histórico, centrado na ideia de rejuvenescimento da nação, é hoje uma das bases fundamentais da política externa chinesa. A diplomacia de Pequim não opera apenas com cálculos estratégicos ou interesses econômicos — ela atua com um sentimento profundo de reparação histórica.
No centro dessa narrativa está o conceito do “século das humilhações”, período que vai de meados do século XIX à fundação da República Popular da China em 1949. Nesse intervalo, a China foi derrotada nas Guerras do Ópio, sofreu invasões coloniais, perdeu territórios (como Hong Kong e Taiwan), e viu seu sistema imperial ruir diante das potências ocidentais e do Japão. Para o Partido Comunista Chinês, essas derrotas não foram apenas militares ou diplomáticas, mas simbolizaram a quebra da soberania e da dignidade de uma civilização milenar.
Desde Deng Xiaoping, e com mais força sob Xi Jinping, essa memória passou a ser sistematicamente mobilizada. Xi promove o conceito de “grande rejuvenescimento da nação chinesa”, uma meta política e simbólica que combina desenvolvimento econômico, restauração territorial e fortalecimento militar. A história, nesse contexto, torna-se ferramenta de política de Estado — não para reflexão crítica, mas para unificação identitária e legitimação da autoridade central.
Taiwan é o exemplo mais claro. Para o governo chinês, a ilha é uma “província rebelde” que precisa ser reintegrada para completar a unidade nacional e curar a ferida da separação imposta por forças estrangeiras. A independência de fato da ilha, embora não formalizada, é vista por Pequim como a última grande cicatriz do século das humilhações. A reunificação, portanto, não é apenas uma demanda política — é uma missão histórica. Esse discurso é reforçado por livros escolares, documentários estatais e discursos oficiais, que apresentam a reunificação como inevitável e necessária.
O mesmo nacionalismo orienta as disputas no Mar do Sul da China. Pequim reivindica vastas áreas marítimas com base em mapas históricos e vestígios da presença chinesa em épocas imperiais. Embora essas reivindicações contrariem o direito internacional e provoquem tensões com países como Filipinas e Vietnã, a liderança chinesa insiste que está apenas recuperando o que foi injustamente perdido. Construções de ilhas artificiais, instalação de bases militares e controle sobre rotas marítimas são apresentados como atos de defesa histórica, não de agressão.
O Japão, por sua vez, continua sendo alvo recorrente da retórica nacionalista chinesa. A memória da ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial — especialmente do Massacre de Nanquim — é constantemente relembrada por órgãos oficiais, museus e campanhas públicas. Pequim exige que o Japão “admita plenamente” seus crimes históricos, e usa essas exigências como instrumento para limitar a influência diplomática e militar de Tóquio na Ásia.
Na diplomacia cultural e internacional, esse nacionalismo se traduz em ofensivas ideológicas. Institutos Confúcio, documentários históricos, filmes patrióticos e campanhas de redes sociais buscam projetar uma imagem da China como vítima histórica que agora se reergue com dignidade. Essa abordagem reforça um discurso dual: por um lado, a China é uma potência pacífica, que apenas deseja respeito e soberania; por outro, é uma civilização que não esquecerá as ofensas do passado e que reagirá a qualquer tentativa de novo domínio ocidental.
Esse tipo de política externa tem efeitos ambíguos. Por um lado, consolida o apoio interno e reforça a coesão nacional. Por outro, aumenta as tensões com vizinhos e alimenta a desconfiança no Ocidente, que vê a mobilização do passado como justificativa para revisionismos territoriais e autoritarismo político. Além disso, o uso instrumental da história bloqueia o diálogo sobre interpretações alternativas e impede reconciliações verdadeiras.
A China transformou sua dor histórica em arma diplomática. Em um mundo em que narrativas moldam percepções e legitimam ações, Pequim aposta na memória como força estratégica. Não se trata apenas de escrever o futuro — mas de vencer, simbolicamente, as guerras que perdeu no passado.
Esse artigo faz parte de uma coletânea de artigos sobre a China. O objetivo é entender algumas de suas estruturas mais profundas e seu imopacto no mundo.
- A lógica da unidade: a China como Estado civilizacional
- O partido como espinha dorsal: o papel do PCC na estabilidade e no progresso
- A virada geopolítica da China: de potência silenciosa à disputa da ordem global
- Tecnologia e vigilância: o modelo chinês de governança no século XXI
- A guerra pelo passado: o nacionalismo como base da política externa chinesa
- Pontes do Sul: a China e a nova diplomacia do Sul Global
- O império do risco: os limites e as contradições do projeto chinês
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X