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Pontes do Sul: a diplomacia chinesa no Sul Global

Se no século XX as relações internacionais foram moldadas principalmente pelas alianças entre potências ocidentais, o século XXI tem assistido ao fortalecimento de um novo eixo: a cooperação entre países do Sul Global, com a China ocupando papel central. Mais do que retórica de solidariedade entre nações em desenvolvimento, essa diplomacia está fundamentada em interesses estratégicos concretos. Por meio de investimentos em infraestrutura, acordos energéticos, financiamento de obras públicas e transferência de tecnologia, Pequim construiu uma extensa rede de influência sobre Ásia, África e América Latina. Trata-se de uma política externa pragmática, orientada não por ideologia, mas por geoeconomia — e que desafia a tradicional supremacia diplomática do Ocidente.

O pilar dessa estratégia é a Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), lançada em 2013. Apelidada de “Nova Rota da Seda”, essa iniciativa envolve mais de 140 países e prevê a construção de portos, ferrovias, oleodutos, aeroportos e redes de telecomunicações. Na África Oriental, o porto de Doraleh em Djibuti; na América Latina, o corredor bioceânico ligando Brasil, Bolívia e Peru; no Sudeste Asiático, as estradas entre Kunming e Laos; no Oriente Médio, a modernização de instalações em Abu Dhabi. Todos esses projetos fazem parte de uma visão que combina comércio, logística e presença geopolítica.

O diferencial da diplomacia chinesa é sua abordagem pragmática. Ao contrário de países ocidentais que costumam condicionar cooperação a reformas institucionais ou padrões democráticos, a China adota a doutrina da não interferência. Ou seja, coopera com qualquer governo disposto a negociar, seja ele democrático, autoritário ou híbrido. Isso atrai países que enfrentam dificuldades em acessar financiamento de bancos ocidentais, como Etiópia, Paquistão, Irã, Venezuela ou Zimbábue. Em muitos casos, Pequim se torna o único parceiro relevante disponível.

Outro fator de atração é a velocidade e a escala das operações. Bancos chineses, como o Exim Bank e o Banco de Desenvolvimento da China, aprovam e liberam recursos com rapidez, geralmente sem as exigências regulatórias típicas do Banco Mundial ou do FMI. Empresas chinesas de engenharia e telecomunicações oferecem pacotes completos: projeto, financiamento, execução e manutenção. Isso explica a presença cada vez maior de empresas como Huawei, ZTE, China Harbour e CRRC em grandes obras nos países do Sul.

A diplomacia do Sul Global também tem um componente simbólico importante. A China se apresenta como uma nação que passou por experiências semelhantes — exploração colonial, pobreza extrema, reconstrução nacional — e que agora está pronta para ajudar outros a trilharem o mesmo caminho. Essa narrativa de “país em desenvolvimento que venceu” tem forte ressonância em países que veem o modelo ocidental como distante ou excludente.

Além da infraestrutura, Pequim também investe em diplomacia cultural, tecnológica e sanitária. Durante a pandemia de covid-19, a China distribuiu vacinas, respiradores e equipamentos médicos para dezenas de países africanos e latino-americanos antes mesmo da chegada das ajudas ocidentais. Na educação, oferece bolsas para milhares de estudantes estrangeiros em universidades chinesas. E no campo digital, exporta seu modelo de cidades inteligentes, câmeras de vigilância e redes 5G.

Essa expansão, no entanto, não está isenta de críticas. Em alguns países, os projetos se endividaram, gerando dependência fiscal (como no Sri Lanka, que entregou o porto de Hambantota por 99 anos). Em outros, surgiram denúncias de corrupção, desalojamento de comunidades ou impactos ambientais. A falta de transparência e a ausência de cláusulas sociais nos contratos também levantam questionamentos.

Ainda assim, o fato é que a China se consolidou como o principal parceiro comercial de quase toda a América do Sul, de boa parte da África e de diversos países do Oriente Médio. Sua presença é hoje estrutural — e crescente. O Sul Global já não gira apenas em torno de Washington, Londres ou Bruxelas. Ele é hoje também moldado por Pequim.

A diplomacia chinesa no Sul é, ao mesmo tempo, estratégia econômica, projeção de poder e disputa de narrativa. Em vez de tanques ou imposições políticas, ela opera com obras, crédito e pragmatismo. Não é uma alternativa neutra — mas tem sido, para muitos países, a única alternativa concreta.

Esse artigo faz parte de uma coletânea de artigos sobre a China. O objetivo é entender algumas de suas estruturas mais profundas e seu imopacto no mundo.

  • A lógica da unidade: a China como Estado civilizacional
  • O partido como espinha dorsal: o papel do PCC na estabilidade e no progresso
  • A virada geopolítica da China: de potência silenciosa à disputa da ordem global
  • Tecnologia e vigilância: o modelo chinês de governança no século XXI
  • A guerra pelo passado: o nacionalismo como base da política externa chinesa
  • Pontes do Sul: a China e a nova diplomacia do Sul Global
  • O império do risco: os limites e as contradições do projeto chinês

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