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A lógica da unidade: a China como Estado civilizacional

Ao contrário da maioria das nações modernas que nasceram da ruptura com impérios ou da unificação de reinos, a China se enxerga e se organiza como uma civilização contínua, que atravessa milênios mantendo estruturas culturais, linguísticas e políticas estáveis. Esse dado histórico não é apenas um detalhe identitário — ele molda profundamente a maneira como o país administra o poder, estrutura sua governança e se posiciona no mundo. Entender a China como um Estado civilizacional é o primeiro passo para compreender por que a unidade, a centralização e o controle são valores fundantes e inegociáveis para Pequim.

A noção de que a China é, antes de tudo, uma civilização está na raiz da ideia de “Tianxia”, ou “tudo sob o céu”, que definia a ordem imperial tradicional. Não se tratava de fronteiras geográficas rígidas, mas de um sistema em que o centro — a corte imperial — irradiava harmonia, cultura e autoridade para regiões periféricas. Esse centro tinha não apenas legitimidade política, mas também uma missão moral de civilizar e ordenar o caos. O colapso dessa ordem, como durante os períodos dos Reinos Combatentes, da invasão mongol, ou das guerras civis do século XX, sempre foi interpretado como uma quebra catastrófica da harmonia.

Por isso, a unidade política é vista como um imperativo civilizacional. Diferentemente de países como Alemanha ou Itália, que nasceram da unificação de Estados independentes, a China sempre se viu como um todo que, ocasionalmente, sofre fragmentações a serem superadas. A dinastia Han, os Tang, os Song, os Ming e os Qing são percebidos como variações dentro da mesma continuidade, não como Estados independentes. A República Popular da China, fundada em 1949, é apresentada pelo Partido Comunista como a etapa mais moderna dessa longa trajetória.

Essa tradição ajuda a explicar por que o Partido Comunista Chinês (PCC) se coloca como herdeiro direto da autoridade imperial. Não como ruptura, mas como continuidade com um novo léxico: o imperador desaparece, mas o centro permanece. O partido é, assim, não apenas um instrumento político, mas uma estrutura que representa a civilização chinesa em seu esforço de preservação, expansão e renovação.

A obsessão do governo chinês com temas como separatismo, soberania e estabilidade social encontra eco direto nesse ethos civilizacional. A repressão a movimentos independentistas no Tibete, em Xinjiang e, mais recentemente, em Hong Kong, não deve ser lida apenas como autoritarismo, mas como defesa do núcleo simbólico da civilização chinesa. O medo de fragmentações é alimentado por memórias históricas como o “século das humilhações”, quando potências estrangeiras impuseram tratados desiguais, ocuparam partes do território e fomentaram guerras civis.

O nacionalismo contemporâneo chinês se alimenta dessa história, reforçando a ideia de que a China precisa estar forte, unificada e liderada por um centro moral e político coeso. Qualquer ameaça à unidade — interna ou externa — é tratada como uma questão existencial. A política de “uma só China”, que recusa o reconhecimento internacional de Taiwan como um Estado separado, insere-se exatamente nesse quadro.

O mundo ocidental, acostumado com modelos de pluralismo político e desconcentração territorial, muitas vezes interpreta essa lógica como repressiva ou excessivamente rígida. Mas para a China, é um mecanismo de sobrevivência histórica. Em um território de mais de 9 milhões de km², com mais de 1,4 bilhão de pessoas e dezenas de etnias, permitir o enfraquecimento do centro significaria, do ponto de vista chinês, abrir caminho para o caos. O colapso da União Soviética, assistido de perto por Pequim, serviu como alerta. Deng Xiaoping, em 1991, foi direto: “Isso nunca poderá acontecer conosco”.

A estrutura civilizacional da China também informa sua política externa. Não é por acaso que Pequim se recusa a aceitar interferência em seus assuntos internos, rejeita julgamentos ocidentais sobre direitos humanos e insiste em que cada país deve escolher seu próprio caminho. O centro irradia estabilidade e espera, no mínimo, que o entorno reconheça sua legitimidade histórica.

Compreender a China como um Estado civilizacional, e não como um Estado-nação convencional, é chave para interpretar suas decisões internas e sua estratégia global. Nesse modelo, a unidade não é uma escolha política — é uma necessidade existencial.

Esse artigo faz parte de uma coletânea de artigos sobre a China. O objetivo é entender algumas de suas estruturas mais profundas e seu imopacto no mundo.

  • A lógica da unidade: a China como Estado civilizacional
  • O partido como espinha dorsal: o papel do PCC na estabilidade e no progresso
  • A virada geopolítica da China: de potência silenciosa à disputa da ordem global
  • Tecnologia e vigilância: o modelo chinês de governança no século XXI
  • A guerra pelo passado: o nacionalismo como base da política externa chinesa
  • Pontes do Sul: a China e a nova diplomacia do Sul Global
  • O império do risco: os limites e as contradições do projeto chinês

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