
Para compreender a China contemporânea, não basta olhar para suas conquistas econômicas ou sua presença crescente na geopolítica global. É preciso entender a estrutura que sustenta e conduz essas transformações: o Partido Comunista Chinês (PCC). Longe de ser apenas uma força política convencional, o PCC é o eixo articulador do Estado, o principal formulador de estratégias nacionais e o pilar simbólico de estabilidade e continuidade histórica. Ele não governa apenas — ele molda a própria lógica da modernidade chinesa.
Fundado em 1921 e vitorioso em 1949 após uma longa guerra civil, o PCC assumiu o poder prometendo restaurar a soberania nacional, acabar com o caos interno e conduzir a China à modernização. Essa missão foi consolidada em torno de uma narrativa de salvação e reconstrução nacional, após o que os chineses chamam de “século das humilhações” — período de invasões, tratados desiguais e fragmentação territorial. Desde então, o partido se apresenta não como uma força circunstancial, mas como guardião da identidade, da soberania e do destino da civilização chinesa.
A centralidade do partido aumentou ainda mais após a morte de Mao Zedong, quando as reformas lideradas por Deng Xiaoping nos anos 1980 transformaram radicalmente a economia sem abandonar o monopólio político do PCC. Ao permitir a entrada do capital privado, abrir zonas econômicas especiais e incentivar o empreendedorismo, Deng manteve o partido como o único árbitro da vida política. Essa combinação de abertura econômica com fechamento político — frequentemente classificada no Ocidente como “autoritarismo com mercado” — é, para o PCC, uma forma de garantir estabilidade e evitar o colapso que atingiu outros países socialistas no mesmo período.
Hoje, o PCC não é apenas um partido, mas uma instituição com mais de 96 milhões de membros, presente em todos os setores da sociedade: empresas, escolas, universidades, plataformas digitais, tribunais, bancos e grandes conglomerados industriais. Todo CEO de uma empresa estratégica na China responde, antes de tudo, ao comitê partidário da sua organização. O partido fornece quadros técnicos, promove planos quinquenais de desenvolvimento e ocupa, de forma organizada, o centro de todas as decisões relevantes.
Essa presença capilar é justificada por uma lógica de controle e previsibilidade. Em um país com tamanha diversidade territorial, étnica e econômica, o partido atua como o grande integrador. Ele articula políticas nacionais e regionais, estabelece metas de longo prazo, coordena crises (como durante a pandemia de covid-19) e garante que nenhuma instituição rival possa disputar o poder de forma autônoma.
Sob Xi Jinping, a concentração de poder no partido — e nele próprio — atingiu novos níveis. Xi consolidou uma agenda de “rejuvenescimento nacional”, ampliou o aparato de vigilância, promoveu expurgos internos e fortaleceu o discurso ideológico. A chamada “nova era do socialismo com características chinesas” resgata a figura do líder central, uma espécie de retorno simbólico a Mao, mas agora com o peso do sucesso econômico e da modernização tecnológica.
A política de “prosperidade comum”, lançada por Xi, é um exemplo disso. Trata-se de uma reorientação do crescimento econômico com mais regulação sobre as grandes fortunas, maior redistribuição de renda e controle sobre setores como tecnologia, educação privada e mercado imobiliário. Tudo isso sob comando do partido, que se apresenta como mediador entre capital e sociedade, garantindo que a desigualdade não ameace a estabilidade.
No entanto, essa lógica também impõe limites. A ausência de competição política impede o surgimento de alternativas, e a dependência extrema da hierarquia pode sufocar a inovação institucional. Ainda assim, o modelo chinês — ao menos até aqui — tem mostrado uma eficácia difícil de ignorar: tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza, criou a maior rede de infraestrutura do mundo e projetou o país como uma superpotência.
Para muitos países do Sul Global, o PCC representa uma forma alternativa de modernização: disciplinada, planejada e centrada no Estado. Para seus críticos, é um modelo incompatível com liberdades individuais e com a pluralidade política. Mas para o próprio partido, essas são concessões que a China não pode se permitir. A sua missão não é reproduzir modelos ocidentais — é garantir que a China continue forte, estável e em ascensão.
O Partido Comunista Chinês, portanto, não é apenas uma estrutura de poder: é a própria engenharia de um projeto de país. E enquanto esse projeto continuar a entregar prosperidade com ordem, ele permanecerá como o eixo inamovível da política chinesa.
Esse artigo faz parte de uma coletânea de artigos sobre a China. O objetivo é entender algumas de suas estruturas mais profundas e seu imopacto no mundo.
- A lógica da unidade: a China como Estado civilizacional
- O partido como espinha dorsal: o papel do PCC na estabilidade e no progresso
- A virada geopolítica da China: de potência silenciosa à disputa da ordem global
- Tecnologia e vigilância: o modelo chinês de governança no século XXI
- A guerra pelo passado: o nacionalismo como base da política externa chinesa
- Pontes do Sul: a China e a nova diplomacia do Sul Global
- O império do risco: os limites e as contradições do projeto chinês
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X