
O mundo de hoje não vive uma guerra convencional, tampouco repete os padrões ideológicos da Guerra Fria do século XX. Mas há, em curso, uma disputa sistêmica entre Estados Unidos e China que redefine alianças, tecnologias, rotas comerciais e valores políticos. Esta nova Guerra Fria não se trava com tanques na fronteira da Alemanha, mas com chips, dados, corredores marítimos e narrativas. Trata-se de uma competição entre dois projetos de poder global que disputam não apenas influência, mas a capacidade de moldar o futuro.
Ao contrário da Guerra Fria original, marcada pela oposição entre capitalismo e comunismo, a atual disputa não opõe sistemas ideológicos claramente distintos. A China incorporou mecanismos de mercado, mas sob um regime de comando estatal. Os Estados Unidos defendem a democracia liberal, mas enfrentam polarização e perda de autoridade moral. O embate, portanto, não se dá entre ideologias puras, mas entre duas formas de organizar o Estado, o poder econômico e o controle da informação.
O primeiro campo de batalha é tecnológico. Os semicondutores — minúsculos chips que movem desde celulares até armamentos — tornaram-se peças estratégicas. Os EUA impuseram restrições à exportação de tecnologia de ponta para a China, tentando impedir seu avanço em áreas como inteligência artificial e supercomputação. Em resposta, Pequim lançou planos bilionários para alcançar autonomia tecnológica, promovendo empresas nacionais e aumentando seu controle sobre cadeias produtivas globais. Taiwan, principal produtora mundial de chips, tornou-se peça central dessa guerra: ao mesmo tempo aliada dos EUA e ameaça potencial para a China.
O segundo campo de tensão é o Indo-Pacífico. A região concentra as maiores rotas comerciais do mundo e abriga uma cadeia de alianças em transformação. Os EUA reativaram o Quad (com Índia, Japão e Austrália), fortalecem laços com Filipinas e Coreia do Sul, e promovem a estratégia de “contenção marítima”. A China, por sua vez, expande sua presença no Mar do Sul da China, constrói portos e bases, e desafia a hegemonia americana na região. O equilíbrio regional tornou-se instável, com risco de choques diretos, especialmente em torno de Taiwan.
A nova Guerra Fria também se expressa na economia. Washington tenta reconfigurar as cadeias globais de produção, incentivando empresas a “repatriarem” fábricas ou a transferirem-nas para países aliados, numa estratégia chamada friendshoring. Ao mesmo tempo, busca criar barreiras contra produtos chineses, alegando questões de segurança nacional. A China, por sua vez, investe em moedas digitais estatais, fortalece o yuan em acordos bilaterais e busca alternativas ao sistema financeiro dominado pelo dólar.
Há também uma disputa por normas e valores. Os EUA promovem fóruns sobre democracia digital, cibersegurança e liberdade de expressão, enquanto a China defende a “soberania da internet”, a regulação de conteúdos e o controle estatal sobre plataformas digitais. Em fóruns internacionais, as duas potências se enfrentam na retórica sobre direitos humanos, meio ambiente, governança da IA e regras de comércio.
Mas diferentemente da Guerra Fria anterior, essa nova disputa não é binária. Diversos países, especialmente no Sul Global, recusam-se a escolher lados. Índia, Brasil, Indonésia, Turquia e África do Sul adotam uma diplomacia pragmática, buscando aproveitar-se da rivalidade para obter investimentos, acordos e projeção. Esse grupo emergente defende uma ordem “multipolar”, na qual nem EUA nem China dominem isoladamente.
Apesar das semelhanças com o conflito do século XX, a nova Guerra Fria tem contornos próprios. Não há Cortina de Ferro, mas há barreiras tecnológicas e comerciais. Não há Muro de Berlim, mas há muros de dados, censura e firewalls. A disputa não é apenas por território, mas por influência digital, normas jurídicas e algoritmos.
A nova Guerra Fria está em andamento — silenciosa, complexa e difusa. Seus resultados moldarão a ordem internacional do século XXI. Entender seus mecanismos é essencial para países que desejam manter autonomia e relevância num mundo novamente dividido.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X