
A Europa vive um novo ciclo de tensões identitárias e sociais em que o estrangeiro volta a ocupar o lugar de bode expiatório. Em meio a uma fase de desglobalização econômica e recuo de políticas de integração, juventudes em diversos países europeus têm canalizado seu descontentamento com o aumento do custo de vida contra imigrantes e turistas estrangeiros. O ressentimento, inicialmente material e econômico, se converte em discurso identitário e excludente, transformando o “estranho” em ameaça.
O custo de vida tem subido de forma expressiva nos últimos anos em cidades como Dublin, Berlim, Amsterdã, Lisboa e Barcelona. Esse fenômeno é alimentado por uma série de fatores: escassez de moradias acessíveis, especulação imobiliária, gentrificação e o impacto do turismo de massa. No entanto, o debate público frequentemente ignora a complexidade estrutural do problema e o reduz a uma narrativa simples: os estrangeiros estão “tomando” os espaços urbanos, inflacionando os preços e deixando a população local sem opções.
Essa narrativa tem ganhado espaço especialmente entre os jovens, parcela da sociedade que enfrenta dificuldades para acessar o mercado imobiliário e empregos estáveis. Na Irlanda, por exemplo, manifestações recentes protestaram contra centros de acolhimento para refugiados, sob o argumento de que “não há mais espaço”. Em cidades alemãs, como Leipzig e Dresden, crescem iniciativas de juventudes ligadas a movimentos nacionalistas que denunciam a presença “excessiva” de estrangeiros como responsável pelo aumento do preço dos aluguéis.
Essa simplificação perigosa é explorada por partidos populistas e de extrema-direita, que se alimentam da frustração das juventudes para fortalecer sua pauta anti-imigração. Na França, a retórica da “preferência nacional” vem sendo defendida por grupos políticos que desejam limitar o acesso de estrangeiros ao sistema de bem-estar. Na Itália, líderes populistas já associam diretamente o custo da gasolina, do aluguel e da comida à presença de imigrantes, mesmo que as causas estejam mais ligadas à conjuntura internacional e aos efeitos da guerra na Ucrânia.

A transformação do imigrante em “inimigo interno” é um processo em espiral. Começa pela percepção de que ele compete por recursos escassos — moradias, vagas de emprego, benefícios sociais —, mas avança para uma rejeição cultural. O estrangeiro deixa de ser apenas um “entrave econômico” e passa a ser percebido como alguém que “não compartilha os mesmos valores”, “não pertence” ou “ameaça a identidade nacional”.
Na Europa Central, esse discurso é ainda mais intenso, mesmo em países com baixa presença de imigrantes. Na Hungria, por exemplo, o governo de Viktor Orbán consolidou uma narrativa nacionalista contra “o globalismo” e os “valores estrangeiros”, culpando-os pelo desemprego e pela insegurança. Polônia e Eslováquia seguem rota parecida, cultivando um sentimento de identidade fechada que deslegitima a presença de não-europeus, especialmente vindos da África e do Oriente Médio.
Curiosamente, a retórica anti-imigratória contrasta com necessidades econômicas concretas. A Alemanha, país com envelhecimento acelerado, depende da imigração para manter sua força de trabalho. Empresas alemãs têm dificuldade em contratar e reter profissionais estrangeiros por causa da crescente hostilidade social. Assim, o discurso xenofóbico compromete também a viabilidade econômica de longo prazo da região.
Esse movimento de fechamento e rejeição ocorre em paralelo ao declínio da globalização tal como a conhecíamos nas décadas anteriores. O novo cenário é marcado por uma valorização do “nacional” em detrimento do internacional. A pandemia da Covid-19 e os conflitos geopolíticos recentes aprofundaram esse movimento. As cadeias de produção foram relocalizadas, o turismo foi ressignificado, e o estrangeiro passou a ser visto como risco — seja à saúde, à segurança ou à estabilidade econômica.
Dentro desse panorama, a juventude europeia encontra-se particularmente vulnerável: desassistida pelo Estado, pressionada pelo desemprego e sem perspectivas de mobilidade social, ela vê na rejeição ao outro uma forma de canalizar sua revolta. Não se trata apenas de racismo clássico, mas de uma nova forma de hostilidade social que mistura frustração material com disputas simbólicas por pertencimento.
A imagem capturada hoje em Berlim, diante do icônico Portão de Brandemburgo, ilustra esse fenômeno com clareza simbólica. Um grupo de manifestantes empunha cartazes contra o turismo predatório nas Ilhas Canárias e denuncia que “estrangeiros compram 3 de cada 5 casas — não há mais espaço”. A fala, inscrita num pedaço de papelão, sintetiza o ponto de virada no imaginário social: o estrangeiro não é mais apenas o visitante, mas o invasor de direitos, o responsável por um mercado imobiliário inacessível à juventude local.
O cartaz não fala de políticas urbanas, nem da especulação das grandes incorporadoras, nem do impacto das plataformas de aluguel por temporada. Ele aponta diretamente para o estrangeiro — como se o problema da habitação pudesse ser resolvido com sua ausência. É uma narrativa emocional e direta, como tantas que hoje dominam o debate público europeu. E nela, as casas deixam de ser apenas abrigo e passam a representar trincheiras de identidade: territórios a serem protegidos da presença do outro. É neste ponto que o estrangeiro, antes apenas parte do fluxo global, se torna o inimigo íntimo da juventude europeia.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X