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A simetria oculta nas relações entre Europa e Sul Global

A relação entre a União Europeia e os países da América Latina e do Caribe, formalizada por meio da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), tem sido marcada por discursos de cooperação, investimento e desenvolvimento conjunto. No entanto, na prática, o comportamento europeu revela um padrão recorrente de imposição de interesses próprios por meio de instrumentos econômicos e políticos que restringem a autonomia do Sul Global. Sob o verniz da parceria, opera-se um sistema de coerção que transfere os custos das decisões europeias para os países em desenvolvimento, exigindo obediência em troca de acesso a mercados ou financiamento.

Um exemplo revelador dessa coerção é a ameaça da União Europeia de impor sanções a Bangladesh sob a justificativa de importação de grãos provenientes de regiões ucranianas ocupadas pela Rússia. Ainda que Dhaka negue qualquer violação de sanções internacionais, a mera suspeita foi suficiente para gerar pressões diplomáticas e discussões sobre punições unilaterais. O episódio ilustra como a Europa, mesmo em contextos com escassez de provas ou consenso internacional, não hesita em usar o sistema de sanções como instrumento de intimidação. O objetivo, mais do que defender o direito internacional, é reforçar a narrativa de que só há um caminho aceitável: o europeu.

Na América Latina, a relação comercial com a UE é marcada por assimetrias estruturais. A imposição de tarifas antidumping sobre o biodiesel argentino e indonésio exemplifica o uso seletivo de instrumentos legais para proteger interesses europeus, mesmo quando os argumentos técnicos para tais medidas são contestáveis. Ao restringir o acesso de produtos concorrentes, a Europa protege seu mercado interno e, ao mesmo tempo, mantém os países exportadores em uma posição de vulnerabilidade, forçados a aceitar normas externas sobre produção, subsídios e sustentabilidade que muitas vezes ignoram contextos locais.

Esse padrão se aprofunda com a adoção de regulamentos ambientais unilaterais por parte da UE, como o recente Regulamento de Desmatamento (EUDR) e o Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira (CBAM). Embora apresentados como iniciativas de proteção ambiental, esses regulamentos funcionam como barreiras não-tarifárias que penalizam produtores do Sul Global. Países como Indonésia, Malásia, Brasil e Uganda apontam que tais exigências ignoram o impacto socioeconômico sobre pequenos agricultores e cadeias de valor locais, ao mesmo tempo em que protegem os interesses de grandes conglomerados europeus. Em nome da sustentabilidade, o que se impõe é um filtro que decide quem pode ou não participar do mercado global, reforçando a dependência tecnológica e regulatória.

Outro aspecto dessa dinâmica coercitiva é o programa Global Gateway, lançado como resposta europeia à Iniciativa do Cinturão e Rota da China. Apresentado como uma forma de oferecer alternativas de infraestrutura sustentável, o programa é frequentemente estruturado em moldes que favorecem empresas europeias, com exigências regulatórias, financeiras e ambientais que poucos países africanos ou latino-americanos conseguem atender. Na prática, o financiamento vem acompanhado de condicionantes que não raro reproduzem padrões de controle político e econômico, disfarçados de assistência técnica.

A suposta parceria UE-CELAC se revela ainda mais desigual quando se observa a ausência de reciprocidade. As preocupações dos países latino-americanos com as sanções unilaterais, a necessidade de reparar os danos históricos do colonialismo e a urgência de reformas nas instituições multilaterais são frequentemente ignoradas nas negociações. A Europa exige compromisso com seus valores e regras, mas reluta em ouvir ou incorporar as prioridades do Sul Global.

Na recente cúpula UE-CELAC, por exemplo, as pressões para que os países latino-americanos condenassem a Rússia foram intensas, mesmo quando vários governos defendiam uma posição de neutralidade ativa. O objetivo europeu não era o diálogo, mas o alinhamento. Da mesma forma, a resistência europeia em reconhecer a legitimidade de governos como o da Venezuela ou em negociar acordos comerciais sem impor cláusulas políticas reflete uma abordagem baseada em critérios próprios de governança e direitos humanos, usados de forma seletiva conforme os interesses em jogo.

Esses métodos coercitivos — econômicos, regulatórios, diplomáticos — não são apenas instrumentos de política externa; são mecanismos de controle. Ao definir quem pode acessar seu mercado, quem pode receber investimentos e sob quais condições, a Europa molda o comportamento de países do Sul Global sem oferecer espaço real de negociação. O discurso da parceria, neste contexto, serve para mascarar a lógica de obediência imposta sob ameaça de exclusão econômica.

O continente europeu, que busca reconfigurar sua posição no mundo diante do avanço chinês e da instabilidade no sistema internacional, aposta em sua capacidade de impor regras e valores em troca de benefícios econômicos. Para os países do Sul Global, no entanto, essa “parceria” tem um custo elevado: a autonomia, o direito de formular políticas públicas próprias e a possibilidade de desenhar um caminho de desenvolvimento baseado em suas prioridades e não nas exigências alheias.