
Durante décadas, a China adotou uma postura internacional discreta, priorizando crescimento interno, comércio exterior e integração econômica sem confrontar diretamente a liderança global dos Estados Unidos. Esse modelo, consolidado sob Deng Xiaoping com o lema “esconder capacidades e aguardar o tempo certo”, permitiu à China transformar-se em uma potência econômica sem provocar reações agressivas. Contudo, nos últimos anos, essa estratégia foi substituída por uma postura mais afirmativa, marcada por ambição global, disputas abertas e a tentativa de reconfigurar a ordem internacional. A China silenciosa tornou-se, hoje, uma potência revisionista com vocação para remodelar as regras do jogo.
A transição começou de forma sutil nos anos 2000, quando a China passou a usar seus excedentes comerciais para investir no exterior, estabelecer bancos multilaterais alternativos e financiar infraestrutura em países do Sul Global. O marco definitivo foi o lançamento da Iniciativa do Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative – BRI) em 2013. Apresentado como um plano de interconexão logística e desenvolvimento conjunto, o BRI é, na prática, um instrumento geopolítico para ampliar a influência chinesa, estabelecer dependência econômica e garantir rotas de abastecimento e exportação fora do controle ocidental.
Esse processo é reforçado por instituições paralelas criadas por Pequim, como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), e por acordos bilaterais que evitam organismos multilaterais dominados por países ocidentais. A China também promove a internacionalização do yuan, principalmente em acordos com parceiros estratégicos como Rússia, Irã, Arábia Saudita e Argentina, desafiando a hegemonia do dólar como moeda global.
A diplomacia chinesa também mudou de tom. Se antes era marcada pela cautela e pelo baixo perfil, hoje atua com assertividade — e, em muitos casos, com confrontação direta. O estilo conhecido como “wolf warrior diplomacy”, inspirado em filmes nacionalistas, descreve diplomatas chineses que reagem duramente a críticas, denunciam “interferências” ocidentais e defendem os interesses do país com retórica inflamada. Essa mudança não é apenas estética; ela expressa uma nova autoconsciência da China como potência incontornável.
Na Ásia, a China disputa ativamente o Mar do Sul da China com países como Vietnã, Filipinas e Malásia, e impõe sua presença por meio de bases navais artificiais e patrulhas constantes. Com a Índia, mantém tensões recorrentes na fronteira do Himalaia. E com Taiwan, a retórica de reunificação se intensifica, acompanhada por exercícios militares que simulam bloqueios e invasões. Cada uma dessas ações representa um desafio direto à arquitetura de segurança construída pelos EUA na Ásia-Pacífico desde a Segunda Guerra Mundial.
No Ocidente, a China se apresenta como alternativa ao modelo liberal. Enquanto os Estados Unidos defendem democracia, direitos humanos e livre mercado, a China propõe estabilidade, soberania e desenvolvimento guiado pelo Estado. Em fóruns internacionais, Pequim frequentemente denuncia o que chama de “hipocrisia ocidental” e propõe uma nova “governança global mais equitativa” — uma fórmula que, na prática, favorece o relativismo político e a não interferência.
A aproximação com a Rússia é parte fundamental dessa virada geopolítica. Embora historicamente desconfiadas uma da outra, China e Rússia compartilham hoje o objetivo de enfraquecer a influência dos EUA e criar um mundo multipolar. A cooperação energética, tecnológica e diplomática entre os dois países tem se aprofundado, especialmente após as sanções ocidentais contra Moscou por conta da guerra na Ucrânia. A China não apoia formalmente a invasão, mas também não a condena — e mantém o fluxo de comércio com o Kremlin.
Essa reconfiguração tem um lado ofensivo, mas também defensivo. A China observa com preocupação a aliança estratégica entre EUA, Japão, Austrália e Índia (o Quad), a militarização de Taiwan, os embargos contra suas empresas de tecnologia (como Huawei e ZTE) e o cerco às suas cadeias de semicondutores. O país se vê como alvo de uma contenção deliberada, que busca impedir seu avanço e preservar a liderança ocidental. A resposta chinesa é acelerar sua autonomia tecnológica, aprofundar alianças no Sul Global e apresentar-se como defensora da soberania dos Estados frente à pressão internacional.
A virada geopolítica da China, portanto, não é improvisada. Ela responde a um cálculo estratégico claro: o momento de ascensão não pode ser desperdiçado. A janela de oportunidade demográfica e econômica está aberta, mas tende a se fechar nas próximas décadas. Para o Partido Comunista Chinês, agora é a hora de reescrever as regras da ordem global — mesmo que isso signifique confrontar diretamente quem as escreveu.
Esse artigo faz parte de uma coletânea de artigos sobre a China. O objetivo é entender algumas de suas estruturas mais profundas e seu imopacto no mundo.
- A lógica da unidade: a China como Estado civilizacional
- O partido como espinha dorsal: o papel do PCC na estabilidade e no progresso
- A virada geopolítica da China: de potência silenciosa à disputa da ordem global
- Tecnologia e vigilância: o modelo chinês de governança no século XXI
- A guerra pelo passado: o nacionalismo como base da política externa chinesa
- Pontes do Sul: a China e a nova diplomacia do Sul Global
- O império do risco: os limites e as contradições do projeto chinês
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X