
O avanço tecnológico costuma ser celebrado como um motor de progresso, inovação e liberdade. No Ocidente, o imaginário digital é associado a redes descentralizadas, autonomia individual e democratização da informação. Na China, porém, a tecnologia foi incorporada à lógica do Estado como ferramenta de governança, eficiência e controle social. O país está construindo um modelo próprio de capitalismo digital autoritário, no qual plataformas, dados e algoritmos são instrumentos de vigilância, estabilidade e planejamento. Esse modelo não apenas redefine os limites entre público e privado, mas também lança um desafio ideológico ao liberalismo digital dominante até aqui.
O centro desse modelo é o Estado — mais especificamente, o Partido Comunista Chinês. Diferente dos Estados ocidentais, que regulam o setor digital de forma reativa e fragmentada, o governo chinês atua como planejador e executor de uma estratégia tecnológica nacional. Desde o lançamento do plano “Made in China 2025”, Pequim definiu setores prioritários — inteligência artificial, biotecnologia, semicondutores, redes 5G, robótica — e passou a investir pesadamente para alcançar autossuficiência e liderança global nessas áreas.
Mas essa aposta em tecnologia não é neutra. Em vez de promover apenas crescimento e competitividade, ela visa reforçar a governabilidade e a segurança nacional. O exemplo mais emblemático é o sistema de crédito social, um mecanismo de pontuação baseado no comportamento individual dos cidadãos. Informações sobre pagamentos, multas, interações sociais e até opiniões públicas são integradas em um banco de dados que pode premiar ou punir pessoas com base em sua “confiabilidade”. Embora ainda em fase de implantação completa, o sistema já funciona em diversas províncias e reforça uma cultura de vigilância e disciplina social.
A infraestrutura digital do país também está sob controle do Estado. Empresas como Alibaba, Tencent e Huawei — mesmo sendo gigantes privadas — operam em um regime de “interdependência supervisionada”. Todas devem manter células do Partido Comunista em sua gestão, colaborar com a segurança nacional e alinhar seus produtos às diretrizes do governo. A regulação sobre elas é intensa, como se viu no caso da suspensão da abertura de capital da Ant Group e na queda de braço com Jack Ma. Em um sistema onde o Estado é mais forte que o mercado, o crescimento empresarial é tolerado, mas a dissidência empresarial, não.
A vigilância também é territorial. Cidades como Shenzhen, Hangzhou e Xangai operam com milhares de câmeras equipadas com reconhecimento facial, conectadas a bases de dados integradas. O uso dessas tecnologias é justificado como política de segurança urbana, controle da criminalidade e prevenção de pandemias. Mas seu potencial de repressão é evidente. Em regiões como Xinjiang, onde vive a minoria uigur, o sistema de monitoramento é combinado com restrições de mobilidade, programas de reeducação e vigilância intensiva em residências, mesquitas e redes sociais.
Esse modelo chinês de governança digital atrai atenção internacional não apenas pelo seu alcance, mas pelo fato de estar sendo exportado. Vários países da Ásia, África e América Latina têm adotado sistemas de vigilância e plataformas tecnológicas fornecidas pela China. A Huawei vende redes 5G com ferramentas de controle incorporadas; softwares de reconhecimento facial chineses estão sendo instalados em cidades de Angola, Equador e Etiópia; sistemas de monitoramento urbano desenvolvidos em Hangzhou já foram adaptados para centros urbanos no Oriente Médio. Trata-se de uma diplomacia tecnológica que combina infraestrutura com influência normativa.
Ao mesmo tempo, o modelo chinês entra em choque com a arquitetura digital ocidental. Os EUA e a União Europeia veem a expansão das empresas chinesas como ameaça à segurança, à privacidade e à liberdade política. A exclusão da Huawei de projetos de 5G, as sanções a empresas de chips e a guerra pelo controle das cadeias de semicondutores revelam que a disputa digital é, na prática, uma batalha geopolítica pelo futuro da governança global.
Para a China, a tecnologia não é um fim em si, mas uma extensão do poder estatal. E para muitos países do Sul Global, que valorizam estabilidade mais do que pluralismo político, o modelo chinês aparece como alternativa viável e eficaz. Se o século XXI será definido por quem controla a informação, a China está se posicionando não apenas para competir — mas para ditar as regras.
Esse artigo faz parte de uma coletânea de artigos sobre a China. O objetivo é entender algumas de suas estruturas mais profundas e seu imopacto no mundo.
- A lógica da unidade: a China como Estado civilizacional
- O partido como espinha dorsal: o papel do PCC na estabilidade e no progresso
- A virada geopolítica da China: de potência silenciosa à disputa da ordem global
- Tecnologia e vigilância: o modelo chinês de governança no século XXI
- A guerra pelo passado: o nacionalismo como base da política externa chinesa
- Pontes do Sul: a China e a nova diplomacia do Sul Global
- O império do risco: os limites e as contradições do projeto chinês
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X