
A ordem internacional vive um momento de reformulação profunda. Após três décadas de hegemonia ocidental incontestada, moldada sob os princípios do liberalismo econômico, da democracia representativa e do multilateralismo liderado por Washington e Bruxelas, assiste-se agora à ascensão de uma nova agenda global. Essa nova configuração não é apenas a emergência da China como superpotência econômica e tecnológica, mas também o fortalecimento de uma lógica Sul-Sul, cada vez mais articulada em torno de interesses nacionais, protecionismo estratégico e uma clara des-liberalização das estruturas internacionais. Nesse cenário de transformações, o Brasil, embora dotado de imenso potencial, parece hesitante, conduzido por um governo que carece de uma visão clara de inserção internacional e de legitimidade política interna para projetar influência no tabuleiro global.
A ascensão chinesa é o epicentro dessa transição. Mais do que apenas crescer, a China está construindo uma alternativa sistêmica ao modelo ocidental. Por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), do fortalecimento do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e da promoção do yuan em transações comerciais bilaterais, Pequim vem oferecendo ao Sul Global não apenas investimentos, mas também uma arquitetura econômica e diplomática paralela, baseada na não interferência e na priorização de acordos bilaterais em vez de fórmulas multilaterais liberais. A diplomacia chinesa é cada vez mais assertiva, com um discurso centrado na multipolaridade, na reforma das instituições internacionais e no combate ao que classifica como “hegemonia neocolonial do Ocidente”.
Esse novo mundo não é apenas asiático. A África, o Sudeste Asiático e parte da América Latina estão fortalecendo suas interconexões econômicas e diplomáticas, cada vez menos dependentes do Ocidente. A agenda Sul-Sul, muitas vezes marginalizada nas décadas anteriores, volta ao centro das negociações internacionais, com países buscando alternativas de cooperação baseadas em reciprocidade estratégica, desenvolvimento de infraestrutura e transferência tecnológica — não necessariamente em alinhamento ideológico.
Essa reconfiguração global também coincide com um processo de des-liberalização. Cresce o número de países que adotam políticas econômicas protecionistas, controle estatal sobre setores estratégicos e regulação digital e tecnológica como instrumentos de soberania nacional. O modelo liberal, baseado na abertura irrestrita de mercados, na mobilidade irrestrita de capitais e no protagonismo das corporações transnacionais, passa a ser questionado até mesmo dentro do Ocidente. O “America First”, de Donald Trump, e a “autonomia estratégica” defendida por Emmanuel Macron, são expressões distintas de uma mesma tendência: a revalorização do Estado como agente econômico e político.
Nesse contexto de mudanças profundas, o Brasil poderia ter um papel proeminente. Com uma das maiores economias agrícolas do mundo, relevante parque industrial, reservas minerais estratégicas e uma cultura diplomática historicamente respeitada, o país teria credenciais para atuar como articulador entre os blocos, como voz do Sul Global e como construtor de pontes entre modelos em disputa. No entanto, essa potencialidade não se converte em protagonismo efetivo.
O governo Lula, em sua terceira passagem pela presidência, tem adotado uma política externa de baixo impacto, marcada por ambiguidades estratégicas e limitada projeção internacional. Diferentemente dos seus dois primeiros mandatos, quando o Brasil buscou papel de destaque nos BRICS, em fóruns como a Rodada de Doha ou em iniciativas como o IBAS (Índia-Brasil-África do Sul), agora a atuação externa tem sido reativa, fragmentada e pouco ambiciosa. Os discursos contra o dólar como moeda dominante ou a favor da multipolaridade não se traduzem em iniciativas concretas de reforma ou liderança regional.
Além disso, Lula enfrenta desafios internos que limitam sua capacidade de projetar poder. Crises econômicas persistentes, tensões políticas constantes e um Congresso hostil à sua agenda fragilizam sua autoridade e limitam sua margem de manobra. A polarização política e a desconfiança de parte significativa da população em relação ao governo minam sua legitimidade como porta-voz nacional no exterior. Sem um projeto interno coeso e com baixa aprovação popular, torna-se difícil exercer uma diplomacia ativa e confiável.
Outro fator limitante é a ausência de uma estratégia internacional clara para o Brasil. Não há uma diretriz estruturada que oriente a inserção global do país, seja na reconfiguração das cadeias produtivas globais, seja no campo da inovação tecnológica, da transição energética ou da diplomacia climática. Em um momento em que a China disputa narrativas e recursos com os Estados Unidos, em que a África emerge como fronteira de desenvolvimento, e em que a Ásia redefine o eixo econômico mundial, o Brasil permanece indeciso entre alianças formais e retórica de neutralidade, sem traduzir essa posição em influência real.
O risco que se impõe é o de irrelevância estratégica. Em um mundo multipolar, não há espaço para potências sem rumo. A ausência do Brasil nas principais iniciativas de integração tecnológica, na negociação de normas para inteligência artificial, no debate sobre segurança alimentar global e mesmo no redesenho das instituições multilaterais é um sintoma de inação. O país observa as mudanças, mas não participa de sua modelagem.
O momento atual exige, mais do que nunca, liderança e visão. O Brasil tem os recursos, o capital diplomático e a legitimidade histórica para contribuir na construção de uma ordem internacional mais equilibrada. Mas isso requer um projeto nacional de longo prazo, que articule interesses internos e ambições externas. Requer também um governo capaz de unir o país, superar suas crises políticas domésticas e investir na reconstrução da imagem internacional do Brasil. No novo mundo que se forma, o tempo corre — e quem não se move, fica para trás.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X