
A ideia de que certos valores — como direitos humanos, democracia liberal e racionalidade científica — seriam universais e aplicáveis a todas as sociedades está sendo crescentemente desafiada por governos, movimentos e intelectuais em várias partes do mundo. A noção de universalismo, outrora sustentada como base moral da ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial, enfrenta uma contraofensiva discursiva e institucional que recoloca o particularismo cultural, religioso, nacional e civilizacional no centro das disputas globais. Essa inflexão não é apenas retórica: ela impacta diretamente o funcionamento das instituições multilaterais, a cooperação internacional e o próprio conceito de convivência entre diferentes modelos de sociedade.
A emergência de narrativas alternativas ao universalismo liberal tem múltiplas origens. Na China, por exemplo, o Partido Comunista vem promovendo a ideia de uma civilização chinesa milenar que não precisa importar modelos ocidentais de governança. A “democracia com características chinesas” é apresentada como um sistema eficiente, enraizado na história e na cultura locais, capaz de garantir estabilidade e prosperidade sem adotar a lógica multipartidária ou a separação clássica entre Estado e sociedade. Essa postura é reforçada por iniciativas como a Global Civilization Initiative, que defende o respeito à diversidade de modelos e valores como princípio fundacional da nova ordem internacional.
A Rússia, por sua vez, reforçou nos últimos anos um discurso de matriz conservadora e cristã ortodoxa, que nega a validade de valores como diversidade sexual, secularismo e direitos universais como imposições ocidentais. O governo russo frequentemente denuncia o que chama de “imperialismo moral” das democracias liberais, acusando-as de exportar uma agenda cultural que atenta contra as tradições de outros povos. Essa retórica tem eco em vários países do Leste Europeu, Ásia Central e até em setores do Oriente Médio e África, onde líderes políticos associam os princípios liberais a uma forma de neocolonialismo cultural.
O mundo islâmico também tem produzido contra-narrativas robustas. Movimentos políticos e religiosos em países como Irã, Paquistão, Turquia e Indonésia rejeitam a ideia de que os direitos humanos são neutros ou universais, argumentando que sua formulação está enraizada em concepções ocidentais de indivíduo, laicidade e modernidade. Em seu lugar, propõem interpretações baseadas na sharia ou em princípios comunitários e familiares que desafiam diretamente os padrões promovidos por organizações internacionais. Essa tensão é visível em debates sobre liberdade religiosa, igualdade de gênero e direitos das minorias sexuais.
Na África, o retorno dos particularismos assume formas tanto nacionalistas quanto comunitárias. Líderes como Yoweri Museveni, em Uganda, ou Macky Sall, no Senegal, utilizam o discurso de soberania cultural para resistir a pressões externas sobre temas como sexualidade, liberdade de imprensa e reforma política. Além disso, movimentos sociais e intelectuais pan-africanistas questionam a validade das normas internacionais impostas por organismos que não representam de forma justa os países do Sul Global. Essa crítica se conecta a um mal-estar mais amplo com o funcionamento das instituições multilaterais, que são percebidas como espaços dominados por potências ocidentais.
O impacto desse deslocamento é visível em organismos como a ONU, a OMC e o Conselho de Direitos Humanos. Os debates que antes giravam em torno da universalização de certos padrões passaram a ser tensionados por apelos à diversidade cultural, à multipolaridade de valores e à autodeterminação normativa. O princípio da não ingerência, frequentemente mobilizado por China, Rússia e outros países asiáticos e africanos, colide com a prática das intervenções humanitárias e das sanções por violações de direitos humanos, que são vistas como seletivas e politicamente motivadas.
A crise do universalismo também se manifesta nas disputas sobre ciência e conhecimento. O progressismo científico, que se associava à razão iluminista e ao avanço tecnológico, agora é questionado tanto por fundamentalismos religiosos quanto por correntes identitárias que denunciam o eurocentrismo da ciência moderna. Em países como Brasil, África do Sul e Índia, intelectuais vêm defendendo a valorização de saberes locais, indígenas e tradicionais como forma de resistência epistêmica ao universalismo ocidental. Essa revalorização não implica necessariamente o abandono da ciência, mas sim sua reinterpretação dentro de contextos históricos e culturais específicos.
Essa pluralização de valores desafia diretamente a arquitetura da ordem liberal internacional. Se antes se buscava a convergência em torno de princípios comuns, hoje o que predomina é a tensão entre modelos distintos de sociedade e legitimidade. A própria ideia de progresso é objeto de disputa: para alguns, ele se traduz na ampliação de direitos e no reconhecimento da diversidade; para outros, no retorno a formas tradicionais de organização social e moral, vistas como autênticas e protetoras da coesão comunitária.
Esse cenário levanta dilemas fundamentais. Como garantir uma convivência pacífica entre sistemas de valores que se consideram mutuamente incompatíveis? Como preservar direitos fundamentais sem cair na armadilha do imperialismo normativo? Como construir instituições multilaterais capazes de acolher essa diversidade sem relativizar abusos e arbitrariedades? O mundo contemporâneo exige respostas que não passem pela negação das diferenças, mas por uma política de alteridade radical, na qual o diálogo não esteja condicionado à homogeneidade, e sim à escuta real do outro.
A crise do universalismo não é apenas uma crise das ideias ocidentais, mas um convite à reinvenção da política internacional em bases mais simétricas e plurais. Isso não significa ceder a todo relativismo, mas reconhecer que o mundo é feito de múltiplas histórias, linguagens e valores. Nesse terreno instável, o desafio é evitar tanto o dogmatismo civilizacional quanto o cinismo geopolítico, buscando formas de mediação que respeitem as diferenças sem abrir mão da dignidade humana em sua expressão mais ampla e diversa.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
