
Uma potência global que almeja liderar o sistema internacional precisa, antes de tudo, inspirar confiança. A confiança não é apenas uma virtude moral ou um discurso diplomático — é um instrumento de poder. Ela é o que torna uma nação atraente para investimentos, parceira desejável em alianças e referência normativa para outras sociedades. Quando os Estados Unidos restringem o acesso de estrangeiros a direitos básicos, como a posse ou o aluguel de imóveis, sob alegações vagas de segurança nacional, o que está em jogo não é apenas a imagem interna de um Estado como o Texas, mas a credibilidade de todo o projeto hegemônico norte-americano.
A entrada em vigor do Projeto de Lei 17 do Senado do Texas (SB 17), em setembro de 2025, que proíbe cidadãos e empresas da China, Irã, Coreia do Norte e Rússia de comprar ou alugar imóveis no Estado, ilustra com precisão esse paradoxo. A medida, que afeta desde estudantes estrangeiros até empresas com projetos bilionários, foi justificada como um instrumento para “proteger a segurança nacional” — um conceito tão amplo quanto manipulável. Ao mirar especificamente em países considerados adversários, sobretudo a China, o Estado norte-americano mais populoso depois da Califórnia envia uma mensagem clara: estrangeiros não são bem-vindos, a não ser sob vigilância e com limitações legais explícitas.
A desconfiança institucionalizada pelo SB 17 faz eco a episódios anteriores de exclusão e racismo nos Estados Unidos. A nova lei foi comparada por ativistas ao Ato de Exclusão dos Chineses de 1882, quando o Congresso norte-americano vetou a imigração de trabalhadores chineses — um marco na institucionalização da xenofobia asiática nos EUA. Agora, mais de um século depois, a retórica da segurança nacional substitui o discurso abertamente racial, mas os efeitos são semelhantes: comunidades inteiras se veem marginalizadas, não apenas do ponto de vista social, mas também jurídico e econômico.
Essa nova onda de restrições não se limita ao Texas. Desde 2021, ao menos 26 Estados norte-americanos — em sua maioria sob controle republicano — aprovaram ou propuseram legislações semelhantes, restringindo a compra de imóveis por estrangeiros. O alvo preferencial é quase sempre a China, o que mostra como o imaginário da guerra fria foi atualizado para caber na disputa sino-americana contemporânea. Episódios como o do balão espião chinês em 2023 apenas intensificaram esse sentimento, ainda que sua gravidade concreta seja contestável.
As consequências dessa política de desconfiança são múltiplas. No plano econômico, empresários locais temem perder investimentos. Estima-se que, entre 2011 e 2021, empresas chinesas tenham injetado mais de US$ 2,7 bilhões no Texas, gerando quase cinco mil empregos. Agora, diante da incerteza jurídica e do clima hostil, várias companhias consideram se transferir para outros Estados ou países. Pequenos empreendedores, como o sino-americano Jason Yuan, relatam quedas significativas nas vendas e instabilidade entre clientes e fornecedores. A desconfiança que o governo pretende impor a estrangeiros se dissemina internamente, corroendo a confiança entre cidadãos e suas instituições.
Mais do que uma crise local, o SB 17 é sintoma de uma mudança estrutural na forma como os EUA se relacionam com o mundo. A estratégia de hard power, antes limitada a ações militares ou sanções econômicas, agora se infiltra na vida cotidiana de imigrantes, empresários e estudantes. Ao recusar direitos básicos a indivíduos com base em sua nacionalidade, os EUA colocam em xeque o modelo de liderança liberal que sempre disseram promover — um modelo que pressupõe abertura, previsibilidade e confiança mútua.
A reação de setores da sociedade civil norte-americana mostra que essa virada não é unânime. A Fundação União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) tem denunciado o uso indevido do argumento da segurança nacional para legitimar práticas discriminatórias. A Aliança de Defesa Legal Sino-Americana (Calda), por sua vez, recorreu à Justiça para barrar o SB 17, embora ainda sem sucesso. Mas a luta jurídica é desigual quando os ventos políticos sopram em outra direção. Para muitos jovens sino-americanos, como Qinlin Li, recém-formada pela Universidade Texas A&M, o impacto da nova lei vai além das consequências práticas. Ela simboliza uma ruptura emocional e psicológica com o país que escolheram para viver e estudar.
A crise de confiança que se desenha não é apenas entre Washington e Pequim, mas entre os próprios EUA e a comunidade internacional. Outros países observam essa guinada com preocupação. Em resposta a medidas unilaterais dos EUA, governos na Ásia e na África têm reforçado pactos regionais que excluem os norte-americanos. Em fóruns como o BRICS+, cresce a retórica de uma ordem mundial multipolar justamente porque os EUA parecem cada vez menos capazes de se posicionar como árbitros imparciais e promotores de normas universais.
Mesmo entre seus aliados ocidentais, Washington tem enfrentado resistência quando tenta impor medidas de segurança que extrapolam sua própria jurisdição. A França, por exemplo, criticou restrições semelhantes aplicadas por razões comerciais contra empresas chinesas na Europa, alertando para o risco de uma “balcanização” das cadeias produtivas globais. Já países como Indonésia e Malásia vêm expressando publicamente receio de que o endurecimento das políticas migratórias e comerciais dos EUA acabe por afetar seus próprios cidadãos e empresas em solo norte-americano.
O problema central, portanto, não está em medidas pontuais, mas na tendência estrutural. Ao substituir a confiança por políticas de contenção e exclusão, os Estados Unidos desconstroem os próprios pilares que sustentaram sua hegemonia no pós-guerra. Mais do que tanques ou tecnologia, foi a promessa de liberdade e oportunidade — inclusive para estrangeiros — que permitiu aos EUA atrair talentos, capital e influência global. A ruptura desse pacto simbólico, agora expresso em legislações como o SB 17, sugere que a potência americana pode até continuar forte militarmente, mas se enfraquece naquilo que mais importa para uma liderança duradoura: a confiança dos outros em sua palavra.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
