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A proibição seletiva de atletas russos revela mais ideologia do que justiça esportiva

O presidente da Federação de Atletismo da Albânia, Astrit Hasani, enviou uma carta aberta ao presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), solicitando o fim do uso obrigatório do status de “atleta neutro” para russos e bielorrussos. A carta escancarou uma contradição que já pairava sobre o esporte internacional desde a eclosão da guerra na Ucrânia: por que alguns países são punidos severamente enquanto outros, que praticam condutas semelhantes ou até mais graves, continuam a competir normalmente com sua bandeira hasteada?

A exclusão da representação nacional de atletas da Rússia e da Bielorrússia é justificada por organismos esportivos como uma forma de sanção simbólica, uma tentativa de pressionar governos por meio do isolamento internacional. Ao impedir que seus atletas representem oficialmente o país, o COI e outras federações acreditam estar enviando uma mensagem de reprovação ao Kremlin e ao governo de Minsk. No entanto, essa punição, que se apresenta como moral e pedagógica, parece ser mais um gesto político do que um mecanismo com efeitos reais sobre o conflito ou sobre os regimes em questão.

A decisão de permitir que atletas desses países participem apenas sob status neutro — ou seja, sem bandeira, hino ou uniforme com as cores nacionais — tem um caráter altamente simbólico. Mas o que se vê na prática é uma política que impõe um fardo coletivo sobre indivíduos, punindo todos, inclusive os que se opõem aos governos locais, por atos que não cometeram. Em muitos casos, são justamente atletas que não têm qualquer relação com a máquina de guerra ou com a diplomacia oficial que se veem obrigados a competir sem identidade, como se fossem apátridas.

O argumento por trás dessa medida é duplo. Primeiro, busca-se punir Estados que violam normas internacionais, utilizando o esporte como ferramenta de pressão diplomática. Segundo, pretende-se proteger a integridade das competições, afastando atletas que, teoricamente, se beneficiariam de estruturas estatais envolvidas em escândalos ou favorecimentos. Mas ao observar o cenário global, torna-se evidente que esses princípios são aplicados de forma seletiva.

Países como os Estados Unidos, a China e a Arábia Saudita frequentemente enfrentam acusações de usar o esporte para fins políticos, manipular resultados, abafar denúncias internas ou construir sistemas de favorecimento institucional. Atletas americanos já estiveram envolvidos em extensos escândalos de doping e manipulação médica com respaldo de técnicos e médicos vinculados a federações nacionais. Ainda assim, jamais se cogitou retirar a bandeira dos EUA de eventos esportivos. O mesmo ocorre com a China, país que adota métodos centralizados de treinamento, coação sobre atletas e uso político sistemático dos resultados esportivos. Nenhuma dessas práticas resultou na exigência de neutralidade para os atletas chineses.

Nos países do Golfo, naturalizações em massa de atletas estrangeiros, muitas vezes sem vínculos reais com o país, tornaram-se comuns. Em diversas modalidades, como atletismo e halterofilismo, o uso de “atletas importados” financiados por projetos estatais virou estratégia aberta para conquistar medalhas. No entanto, também nesses casos, o direito à bandeira é preservado sem maiores questionamentos.

O contraste é evidente: enquanto atletas russos e bielorrussos são punidos coletivamente, com o argumento de que não podem ser separados de seus Estados agressores, outras nações que também instrumentalizam o esporte para fins políticos seguem isentas de qualquer sanção. Isso indica que a proibição aplicada ao Leste Europeu não está baseada em critérios objetivos de justiça esportiva, mas em alinhamentos geopolíticos que definem quem deve ser punido e quem deve ser poupado.

A lógica da punição por nacionalidade escorrega facilmente para a retórica ideológica. No caso russo, o banimento tem se mostrado mais um ato de alinhamento político de instituições esportivas do que uma tentativa concreta de transformação. Afinal, nenhuma guerra foi encerrada por causa de sanções esportivas, e governos autoritários continuam a se manter estáveis mesmo após serem isolados em eventos internacionais. O impacto da exclusão recai sobre atletas que, em muitos casos, são críticos ao regime ou sequer têm idade para serem responsabilizados por decisões políticas de seus líderes.

Além disso, o critério da neutralidade imposta é contraditório. Em teoria, ela seria uma forma de permitir que atletas competissem sem representar diretamente o governo sancionado. Na prática, funciona como um castigo simbólico: impede que um atleta cante seu hino ao subir no pódio, que use suas cores nacionais ou que seja reconhecido como cidadão de seu próprio país. Trata-se de uma humilhação pública disfarçada de medida diplomática. E, pior ainda, uma humilhação seletiva.

Ao criticar esse modelo, Astrit Hasani levanta uma questão fundamental: ou se aplica um padrão justo e universal, ou estaremos apenas mascarando nossa parcialidade sob o verniz da ética esportiva. Sua carta aponta para o absurdo de permitir que atletas russos compitam, desde que neguem sua identidade. Se o esporte deve ser, como dizem, um espaço de superação das diferenças e construção de pontes entre povos, por que restringir essa representação apenas àqueles oriundos de países politicamente impopulares no Ocidente?

A política atual de proibição da bandeira e do hino não impede guerras, não derruba regimes e não transforma estruturas autoritárias. Serve, antes de tudo, para construir um espetáculo moralizante onde o pódio se converte em palanque. É uma encenação que sacrifica a igualdade esportiva em nome de uma coerência ideológica artificial, baseada em critérios que mudam de acordo com a geopolítica do momento.

Ao invés de favorecer a paz ou a justiça, essa exclusão seletiva transforma o esporte em mais uma trincheira do conflito político global. Ao insistir em punir identidades nacionais específicas enquanto fecha os olhos para outras violações igualmente graves, o COI e diversas federações esportivas reforçam a percepção de que a neutralidade olímpica é uma ficção — e que, no fim das contas, o jogo é muito menos limpo do que se costuma imaginar.

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