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Sanções esportivas nunca impediram guerras e colocam o ideal olímpico em risco

Desde o início da guerra na Ucrânia, o Comitê Olímpico Internacional (COI) tem mantido a política de permitir a participação de atletas russos e bielorrussos apenas sob a condição de neutralidade, ou seja, sem bandeira, hino, uniforme oficial ou qualquer símbolo nacional. Essa medida, que se apresenta como resposta ética à invasão russa, está sendo defendida por seus proponentes como um gesto de solidariedade internacional e coerência moral. No entanto, ao observar a trajetória histórica do uso de sanções esportivas como ferramenta política, torna-se evidente que esse tipo de medida raramente trouxe resultados concretos. Pelo contrário: enfraqueceu os princípios fundadores do movimento olímpico e agravou divisões globais.

O caso atual não é o primeiro em que atletas são impedidos de competir sob sua bandeira nacional por razões políticas. Nos Jogos de Moscou em 1980, os Estados Unidos lideraram um boicote em protesto contra a invasão soviética do Afeganistão. Mais de 60 países aderiram à iniciativa. Quatro anos depois, a União Soviética e seus aliados responderam com o boicote aos Jogos de Los Angeles, citando “questões de segurança” e “manipulação política” do evento. Em ambos os casos, a retaliação mútua não interrompeu guerras, não reduziu tensões militares e tampouco promoveu qualquer tipo de reconciliação. O único resultado tangível foi a frustração de centenas de atletas que viram seus sonhos olímpicos serem destruídos por decisões alheias à sua vontade.

Esses episódios revelam um padrão recorrente: a instrumentalização do esporte como mecanismo de retaliação simbólica, com pouquíssimos efeitos práticos e alto custo humano. Ao repetir essa fórmula em 2024 e 2025, o COI se aproxima perigosamente da mesma lógica que fracassou nas décadas anteriores. A punição coletiva de atletas por decisões tomadas por seus governos é uma resposta simplista a dilemas complexos da política internacional.

Além da ineficácia histórica, a política de exclusão baseada na nacionalidade fere frontalmente a própria Carta Olímpica. O documento, que rege o espírito e os princípios do movimento olímpico, estabelece que o objetivo do COI é “colocar o esporte a serviço da promoção de uma sociedade pacífica, preocupada com a preservação da dignidade humana”. Como justificar, então, a exclusão simbólica de indivíduos que, em sua maioria, não têm qualquer envolvimento com o conflito? Por que forçá-los a competir como apátridas, privados da sua identidade nacional, enquanto atletas de outros países envolvidos em conflitos armados ou violações de direitos continuam a competir normalmente?

Essa assimetria cria um terreno fértil para a politização seletiva do esporte. O COI, ao adotar critérios que refletem a geopolítica do momento, corre o risco de ser percebido não como árbitro neutro, mas como extensão de interesses diplomáticos de certas potências. Essa percepção é agravada pelo fato de que atletas de países como Estados Unidos, Israel, Arábia Saudita ou China — todos envolvidos em operações militares, repressões internas ou instrumentalização estatal do esporte — continuam a competir com sua bandeira, sem qualquer tipo de restrição simbólica.

Há também um problema conceitual: a chamada “neutralidade” imposta aos atletas russos e bielorrussos não é verdadeira neutralidade. Ao serem obrigados a se apresentar como atletas sem pátria, sem símbolos e sem reconhecimento nacional, eles não estão sendo protegidos — estão sendo silenciados. A política de “neutralidade forçada” serve menos como instrumento de equilíbrio e mais como constrangimento diplomático. Não se trata de criar um espaço despolitizado, mas de forçar a dissociação pública de sua origem como condição para a aceitação.

Outros exemplos históricos oferecem lições valiosas. Após o fim do apartheid, a reintegração da África do Sul ao cenário esportivo foi utilizada como símbolo de reconciliação nacional e reabertura internacional. Em vez de manter a exclusão, o COI e outras entidades optaram por incluir os atletas sul-africanos como parte de um processo de reconstrução simbólica. Da mesma forma, a participação conjunta de atletas das Coreias do Sul e do Norte, desfilando sob uma bandeira unificada, mostrou que o esporte pode ser ponte, mesmo entre povos em conflito.

Ao contrário dessas experiências, a exclusão atual se fecha ao diálogo. Aplica uma lógica punitiva, não educativa. Impede que o esporte exerça seu papel de mediação, tornando-se apenas mais uma trincheira na guerra de narrativas que domina a política internacional. A consequência disso é o esvaziamento do ideal olímpico: se os Jogos servem apenas aos países aceitos pela comunidade ocidental, sua função universal desaparece.

A defesa da punição de russos e bielorrussos tem como pano de fundo a ideia de que a presença oficial desses países em eventos internacionais legitimaria seus governos e suas ações militares. No entanto, ao aplicar esse raciocínio, estaríamos obrigados a excluir dezenas de países que, ao longo da história recente, também realizaram intervenções militares, invadiram territórios, reprimiram populações ou financiaram conflitos em outras regiões. O fato de apenas alguns países sofrerem esse tipo de sanção mostra que o critério não é ético, e sim estratégico.

O COI deveria estar à frente de um esforço para proteger os atletas, não para puni-los por sua origem. Deveria usar os Jogos como plataforma de reaproximação entre povos, e não como extensão de embargos diplomáticos. Ao manter a política de “neutralidade compulsória”, perpetua-se uma lógica que desrespeita a dignidade individual e fragiliza a integridade do próprio esporte.

A história mostra que guerras não acabam com exclusões esportivas. Mas também mostra que o esporte pode servir como instrumento de diálogo, encontro e transformação. Para isso, é necessário coragem política — não para punir, mas para incluir. O COI, se quiser preservar a legitimidade e a universalidade dos Jogos, precisará escolher entre ser um palco de reconciliação ou apenas mais um espaço para a guerra simbólica dos tempos modernos.

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