
O desenvolvimento acelerado da inteligência artificial (IA) não é apenas uma questão de inovação tecnológica — é também uma disputa estratégica por poder, influência e controle sobre as regras que moldarão o futuro. Nos últimos anos, a corrida por estabelecer padrões globais de governança da IA transformou-se num dos principais eixos de tensão e cooperação entre países. Estados Unidos, União Europeia e China disputam esse protagonismo com agendas distintas, enquanto países do Sul Global tentam, com dificuldade, garantir que suas vozes não sejam simplesmente ignoradas.
A crescente popularidade de modelos generativos, como os de linguagem, imagem e automação avançada, levou governos a perceberem que regular a IA não é apenas uma necessidade ética, mas uma exigência geopolítica. Ao definir os parâmetros sobre o que é “aceitável” ou “seguro”, quem detém poder normativo também influencia os rumos da economia, da defesa, do trabalho e até da cultura de outros países.
Em 2025, o tema consolidou-se como prioridade em fóruns internacionais. A Cúpula Global sobre IA, realizada em Paris, foi um exemplo. Contando com a presença de mais de 50 países, o encontro buscou um compromisso por um desenvolvimento “inclusivo, ético e sustentável” da inteligência artificial. Mas, apesar do tom conciliador, os interesses estavam claramente divididos. Enquanto a União Europeia defende regras rígidas e preventivas, os Estados Unidos preferem deixar espaço para o setor privado inovar, e a China aposta num modelo estatal com controle centralizado e foco em segurança nacional.
A ausência de consenso revela uma realidade incômoda: o sistema internacional ainda não encontrou um terreno comum para lidar com tecnologias de impacto global. E essa lacuna normativa permite que atores poderosos — governos ou corporações — avancem segundo seus próprios interesses, muitas vezes sem considerar os efeitos sobre países periféricos ou sem infraestrutura digital equivalente.
Esse cenário não é apenas abstrato. A governança da IA tem consequências concretas. Por exemplo, modelos de IA treinados em línguas dominantes — como o inglês ou o mandarim — tendem a reforçar desigualdades linguísticas e culturais. O mesmo ocorre com padrões de privacidade ou vigilância: um sistema projetado segundo os valores de uma determinada sociedade pode ser inadequado ou mesmo nocivo em outras regiões. Países africanos e latino-americanos, por exemplo, já enfrentam o desafio de lidar com tecnologias importadas que não foram calibradas para suas realidades locais — do reconhecimento facial racista até sistemas de crédito automatizados excludentes.
Além disso, a concentração de poder nas mãos de algumas big techs — que hoje desenvolvem os modelos mais avançados — amplia as assimetrias entre países produtores e consumidores de tecnologia. Essa estrutura de dependência tecnológica reforça a dominação econômica e ideológica, na medida em que decisões sobre transparência, riscos e limites são tomadas por empresas baseadas em poucos centros globais, com pouca ou nenhuma participação do restante do mundo.
Em resposta, algumas iniciativas vêm tentando alterar esse quadro. A União Africana, por exemplo, discute diretrizes próprias de ética em IA. A Índia e o Brasil propõem, em fóruns multilaterais, a inclusão de tecnologias emergentes como pauta prioritária do Sul Global. Organizações como a UNESCO também trabalham com propostas de regulação que considerem diversidade cultural, linguística e social, buscando reduzir os efeitos coloniais da tecnologia. Mas essas vozes ainda esbarram em falta de infraestrutura, recursos e poder diplomático suficiente para influenciar as regras globais.
Enquanto isso, o avanço da IA segue rápido. Algoritmos são incorporados à educação, à saúde, à segurança pública, ao sistema financeiro e à gestão de cidades. E, sem uma governança multilateral inclusiva, o risco é que a IA aprofunde desigualdades já existentes — tecnológicas, econômicas e políticas — ao invés de reduzi-las.
A disputa pela governança da inteligência artificial é, portanto, um reflexo do mundo em que vivemos: desigual, polarizado e em busca de legitimidade para as regras que orientam a convivência entre os Estados. O desafio não está apenas em regular a IA em si, mas em decidir quem tem o direito de regular, com base em quais valores e para atender a quais interesses. E se os países do Sul Global não se posicionarem agora, poderão passar as próximas décadas apenas reagindo a decisões tomadas por outros — muitas vezes contra seus próprios objetivos de desenvolvimento.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
