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A anti política externa de Bolsonaro

A política externa não é comumente chamada de Política de Estado à toa. Mais do que expressar os anseios mais imediatos do presidente, ela se foca nos interesses mais profundos do país. Trata-se de um complexo intrincado de ações e compromissos, delicadamente construídos ao longo do tempo.

O governo Bolsonaro, pelo visto com o apoio explícito do chanceler Ernesto Araujo, está ignorando essa ideia e tratando a política externa como uma plataforma político-ideológica. Só que, neste caso, as consequências não esperam.

No início do governo o presidente Bolsonaro declarou que mudaria a embaixada brasileira para Jerusalém. Essa foi uma forma de mostrar o alinhamento internacional com os Estados Unidos, mas apenas parece ter considerado essa agenda, ignorando as demais consequências. No final de março (2019) o presidente Bolsonaro foi até Israel em uma visita oficial e lá ampliou o número de erros de política externa, continuando a achar que discursos e postagens em redes sociais resolve o problema.

Resolveu dar um passo atrás e, ao invés de mudar a embaixada, apenas abrir um escritório de representação comercial. O resultado foi desastroso. Israel não conseguiu o que esperava, já que a abertura da embaixada era algo importante para seu posicionamento internacional. A Palestina não gostou pois isso indica certo reconhecimento. Os países árabes não gostaram pois isso indica uma intromissão numa discussão que não nos pertence.

O resultado concreto foi desagradar a todos. Os Embaixadores dos países árabes no Brasil solicitaram uma reunião com o presidente Bolsonaro e já indicam que podem impor perdas comerciais ao Brasil. Israel também poderá impor perdas comerciais para forçar o país a manter sua ideia original. Assim, nós não só não ganhamos com o que foi feito, como também estamos perdendo.

Esse é apenas um dos casos nos quais nossa política externa busca mostrar aos Estados Unidos o quão alinhado estamos, mas sem compreender a realidade mais profunda do país, seus compromissos e interesses de longo prazo.

A tradição de política externa brasileira mostra que somos um país avesso ao contraditório e que prefere atuar na construção de consensos, mais do que na tomada unilateral de posição. Um chanceler deve ser alguém que busque traduzir para a política externa as políticas de governo, transformando-as em políticas de Estado. O que temos visto, no entanto, é um chanceler polêmico e que amplia as posições ainda mais polêmicas do presidente.

Se não houver mudanças rápidas na orientação da política externa brasileira, as consequências serão duradouras. Em pouco tempo se destrói relacionamentos e compromissos forjados ao longo de décadas. Está na hora de o Brasil voltar a ser um país que busca a construção de um mundo multilateral e pacífico, que amplia os canais de diálogo com diversos players internacionais, com especial destaque para os países dos BRICS.

Está na hora de entendermos que falas são bonitas e inspiradoras, mas ações é que efetivamente deixam as consequências.

Revisão: este artigo foi publicado originalmente em 2/4/2020. A seguir um artigo sobre o mesmo tema publicado em 8/5/2020 que tem uma leitura no mesmo sentido. Vale a leitura

A reconstrução da política externa brasileira

A gravíssima crise de saúde da Covid-19 revelou a irrelevância do Itamaraty e seu papel contraproducente em ajudar o Brasil a obter produtos e equipamentos médico-hospitalares; o quadro atual é de vergonhosa subserviência e irracionalidade

Fernando Henrique Cardoso, Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek, José Serra, Rubens Ricupero e Hussein Kalout

08/05/2020 – 04:30

Apesar de nossas distintas trajetórias e opiniões políticas, nós, que exercemos altas responsabilidades na esfera das relações internacionais em diversos governos da Nova República, manifestamos nossa preocupação com a sistemática violação pela atual política externa dos princípios orientadores das relações internacionais do Brasil definidos no Artigo 4º da Constituição de 1988.

Inovadora nesse sentido, a Constituição determina que o Brasil “rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I- independência nacional; II- prevalência dos direitos humanos; III- autodeterminação dos povos; IV- não-intervenção; V- igualdade entre os Estados; VI- defesa da paz; VII- solução pacífica dos conflitos; VIII- repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX- cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X- concessão de asilo político”.

“Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.”

É suficiente cotejar os ditames da Constituição com as ações da política externa para verificar que a diplomacia atual contraria esses princípios na letra e no espírito. Não se pode conciliar independência nacional com a subordinação a um governo estrangeiro cujo confessado programa político é a promoção do seu interesse acima de qualquer outra consideração. Aliena a independência governo que se declara aliado desse país, assumindo como própria uma agenda que ameaça arrastar o Brasil a conflitos com nações com as quais mantemos relações de amizade e mútuo interesse. Afasta-se, ademais, da vocação universalista da política externa brasileira e de sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, desenvolvidos e em desenvolvimento, em benefício de nossos interesses.

Outros exemplos de contradição com os dispositivos da Constituição consistem no apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, violando os princípios de autodeterminação e não-intervenção; o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, à igualdade dos Estados e à solução pacífica dos conflitos; o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança da ONU; a aprovação oficial de assassinato político e o voto contra resoluções no Conselho de Direitos Humanos em Genebra de condenação de violação desses direitos; a defesa da política de negação aos povos autóctones dos direitos que lhes são garantidos na Constituição, o desapreço por questões como a discriminação por motivo de raça e de gênero.

Além de transgredir a Constituição Federal, a atual orientação impõe ao país custos de difícil reparação como o desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos.

Admirado na área ambiental, desde a Rio-92, como líder incontornável no tema do desenvolvimento sustentável, o Brasil aparece agora como ameaça a si mesmo e aos demais na destruição da Amazônia e no agravamento do aquecimento global. A diplomacia brasileira, reconhecida como força de moderação e equilíbrio a serviço da construção de consensos, converteu-se em coadjuvante subalterna do mais agressivo unilateralismo.

Na América Latina, de indutores do processo de integração, passamos a apoiar aventuras intervencionistas, cedendo terreno a potências extrarregionais. Abrimos mão da capacidade de defender nossos interesses, ao colaborarmos para a deportação dos Estados Unidos em condições desumanas de trabalhadores brasileiros ou ao decidirmos por razões ideológicas a retirada da Venezuela, país limítrofe, de todo o pessoal diplomático e consular brasileiro, deixando ao desamparo nossos nacionais que lá residem.

Na Europa Ocidental, antagonizamos gratuitamente parceiros relevantes em todos os domínios como França e Alemanha. A antidiplomacia atual afasta o país de seus objetivos estratégicos, ao hostilizar nações essenciais para a própria implementação da agenda econômica do governo.

A gravíssima crise de saúde da Covid-19 revelou a irrelevância do Ministério das Relações Exteriores e seu papel contraproducente em ajudar o Brasil a obter acesso a produtos e equipamentos médico-hospitalares. O sectarismo dos ataques inexplicáveis à China e à Organização Mundial de Saúde, somado ao desrespeito à ciência e à insensibilidade às vidas humanas demonstrados pelo presidente da República, tornaram o governo objeto de escárnio e repulsa internacional. Criaram, ao mesmo tempo, obstáculos aos esforços dos governadores para importar produtos desesperadamente necessários para salvar a vida de milhares de brasileiros.

O resgate da política exterior do Brasil exige o retorno à obediência aos princípios constitucionais, à racionalidade, ao pragmatismo, ao senso de equilíbrio, moderação e realismo construtivo. Nessa reconstrução, é preciso que o Judiciário, guardião da Constituição, e o Congresso Nacional, representante da vontade do povo, cumpram o papel que lhes cabe no controle da constitucionalidade das ações diplomáticas.

A fim de corresponder aos anseios do nosso povo e corresponder às necessidades reais do Brasil, a política externa precisa contar com amplo respaldo na opinião pública, e a colaboração na sua concepção de todos os setores da sociedade. Requer também o engajamento do nosso corpo de diplomatas: uma política de Estado e não uma ação facciosa voltada para excitar os ânimos e exacerbar os preconceitos de uma minoria obscurantista e reacionária. Nossa solidariedade e decidido apoio aos diplomatas humilhados e constrangidos por posições que se chocam com as melhores tradições do Itamaraty.

A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e indispensável. Deixando para trás essa página vergonhosa de subserviência e irracionalidade, voltemos a colocar no centro da ação diplomática a defesa da independência, da soberania, da dignidade e dos interesses nacionais, de todos aqueles valores, como a solidariedade e a busca do diálogo, que a diplomacia ajudou a construir como patrimônio e motivo de orgulho do povo brasileiro.

Fernando Henrique Cardoso é ex-presidente da República e ex-ministro das Relações Exteriores;

Aloysio Nunes FerreiraCelso AmorimCelso LaferFrancisco Rezek e José Serra são ex-ministros das Relações Exteriores;

Rubens Ricupero é ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente e ex-embaixador do Brasil em Washington;

Hussein Kalout é ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

Artigo publicado originalmente em https://oglobo.globo.com/mundo/artigo-reconstrucao-da-politica-externa-brasileira-24416079

Rodrigo Cintra
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X