O Presidente da China, Xi Jinping, partirá do Brasil tão logo terminada, hoje, a reunião do BRICS. É conveniente fazer um balanço desta visita – e da reunião, obviamente (o que tentarei fazer mais tarde…). Para tanto, vamos imaginar que somos um analista estrangeiro que reflete com um “olhar frio” e descompromissado sobre os resultados efetivos da visita.
Para tanto, voltemos a 1974, ano em que Brasília transferiu seu relacionamento de Taipé para Pequim, em pleno governo militar. Já era tarde, pois fomos um dos últimos países “relevantes” a deserdar Taiwan em favor da China, ainda maoísta (Mao então vivia…). Até o Presidente Nixon já havia estado em Pequim, em 1972, e aberto o caminho para a inauguração das relações sino-americanas, que Jimmy Carter formalizaria em 1979.
Isto foi graças a um dos maiores Chanceleres que tivemos no século passado – e desde sempre, a meu ver…–, Antonio Azeredo da Silveira, que baseou a sua política externa na independência do viés ideológico que então imperava na “Guerra Fria”, nomeando-a de “pragmatismo responsável”. Deng Xiaoping faria mais ou menos o mesmo quando decidiu abrir a China para o mundo, em 1979. O mote – “não importa se o gato é branco, ou preto, desde que cace ratos” –,por ele cunhado, pode-se aplicar a ambas as políticas, a meu ver.
Os chineses tomariam a iniciativa: em 1993, o então Vice-Primeiro-Ministro encarregado das reformas econômicas da China, Zhu Rongji, veio ao Brasil para nos propor um acordo de “parceria estratégica”. Fomos o primeiro país ao qual a República Popular propôs tal acordo. Ela então se baseava no entendimento de que nossos dois países eram os líderes naturais em suas respectivas regiões e que, como tal, deveríamos encabeçar o processo de emergência do “Terceiro Mundo”, em substituição à bipolaridade EUA X URSS, que começava a se desfazer. Ironicamente, os Produtos Internos Brutos dos dois países então praticamente se equivaliam: Brasil: US$ 429,032 milhões, e China US$ 444,7 milhões. Nossas economias eram, praticamente, iguais!!! Esta parceria foi, a propósito, elevada, em 2012, a uma ”Parceria Estratégica Global Sustentável para o Século XXI”.
Mas já então as nossas percepções com relação ao sentido de “parceria” divergia: para nós, ela seria abrangente, tanto que juntos inauguramos o primeiro empreendimento, então, de países em desenvolvimento num projeto de alta tecnologia: criamos o sistema de satélites “China-Brazil Earth Research Satellite”/CBERS, que hoje já está em sua quarta edição e monitora a Amazônia. Para os chineses o Brasil representava sobretudo a fonte de alimentos para a sua população que já ultrapassava a casa do bilhão de habitantes (1,192 bilhão, na verdade)
.
Ultrapassados os dias de radicalização maoísta (Mao falecera em 1976), a nova elite do regime, formada sobretudo por tecnocratas, estava empenhada em desconstruir o “ancien régime”, mantendo, porém, a imagem do Grande Timoneiro como garante da estabilidade política do país. Nós, de nossa parte, viveríamos os anos da reformulação da nossa política, liderada por planos econômicos que caracterizaram os governos Itamar Franco e seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso, até que o Partido dos Trabalhadores chegou ao poder, nos braços de Luiz Inácio Lula da Silva e sua sucessora, Dilma Roussef.
Invertemos, então, as nossas bússolas geopolíticas: enquanto nos voltávamos para o Sul, a China decidia abrir-se para o mundo. Enquanto nos enclausurávamos no radicalismo contra todos que não liam a cartilha Sul-Sul, a República Popular concentrou-se em buscar o resgate do “Século das Humilhações” e reencontrar o lugar que ela achava ser de seu direito, e que lhe pertencera até que as potências coloniais lhe surrupiaram, no século XIX. Através de um formulário bem traçado pelos seus Planos Quinquenais, a China foi crescendo a passos de gigante até ocupar o segundo lugar entre as maiores economias mundiais (na verdade, o primeiro, a se levar em conta o PIB/PPP). E este é somente o princípio, calculam os analistas…
E não parou aí: não somente tornou-se a maior exportadora de bens em todo o mundo, como, a partir de 2013 empenha-se em tornar-se a superpotência tecnológica do planeta, desbancando os Estados Unidos. O Plano “Made in China 2025” é o roteiro que ela definiu para assumir esta liderança tecnológica, alimentado pelo “China Dream”, tema desenvolvido por um professor da Academia de Defesa da China, Liu Mingfu, e lema obsessivo de Xi, que guia a República Popular a tornar-se o país/economia líder do planeta em 2050!
Ambicioso?
A “guerra comercial” que Donald Trump lhe faz atualmente é a comprovação do temor dos americanos de serem “sobrepujados” pelos chineses. Isto sem levar em conta a “One Belt, One Road Initiative”, “menina-dos-olhos” do Presidente chinês, que busca reviver a antiga Rota da Seda e unir a Ásia à Europa e à África, só que desta feita muito mais ambiciosa e multipolar (liderada – e bancada – pela República Popular).
E nós?
Começamos mal…Não nos esqueçamos de que o então-candidato à Presidência do Brasil, Jair Bolsonaro, em campanha, visitou Taiwan, em março de 2018, anátema para os chineses continentais. Houve o “devido” protesto do governo chinês, porém menos contundente – eles são estrategistas históricos – do que se esperava do que eles consideram o pior ato de agressão de um país com relação à China! E na campanha, Bolsonaro transformou a República Popular num “inimigo figadal”. Eleito, certamente inspirado – e instruído – por assessores mais competentes que a Chancelaria brasileira, foi mudando de opinião, e finalmente realizou a visita oficial à China, em outubro passado. Voltou dizendo que a “China é um país capitalista”…
Ainda que a imprensa brasileira tenha noticiado que ” foram parcos os resultados”, há que se entender a cabeça dos chineses: o roteiro das relações foi planejado integralmente, como tudo na China, aliás, “step by step”, separando o ideológico do pragmático. A visita de Xi que ora termina significa mais um passo em direção a um relacionamento baseado em vantagens mútuas (seria a reinvenção do pragmatismo responsável de Azeredo da Silveira?), no qual negócios são negócios – bem “à la chinesa” – e as ideologias ficam guardadas no devido lugar.
Afinal, não se pode descartar um parceiro comercial – o nosso primeiro, de fato – e investidor do porte da China, não é? Tanto é assim que, tomando a liderança, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, mencionou o interesse em se negociar uma área de livre-comércio com a China.
Factível? Complicado, certamente, diante dos compromissos do Brasil com o Mercosul, por exemplo, que impede negociações comerciais unilaterais de seus membros. Ademais, não nos esqueçamos de que um de seus membros – o Paraguai – reconhece Taiwan e não a China continental como país. E há, por cima, o “relacionamento privilegiado” do Brasil bolsonarista com os Estados Unidos de Donald Trump, opositor ferrenho da emergência da República Popular. Diante disto, seria, por ora, quase uma miragem a concretização da intenção do Ministro Guedes? Mas seria importante?…
Temos muito a oferecer. Somos uma das maiores potências agrícolas, tecnologicamente falando, inclusive, do planeta. Esta é a nossa grande vantagem comparativa e que foi, desde sempre, o principal interesse dos chineses. Temos que nos desfazer do complexo de cachorro enxotado de achar que este perfil nos torna uma “sub-economia” dependente dos êxitos tecnológicos dos nossos parceiros. Não somente isto não é vinculo de “causa e efeito”, como também, em última instância, a humanidade pode sobreviver sem computadores e seus sucedâneos tecnológicos, mas não sem alimento..
.
Fundamental, a meu ver, é nos conscientizarmos de que o século XXI se desloca(ou) do Atlântico para o Pacífico, inexoravelmente. Ficaremos no presente/passado, ou assumiremos o futuro? Este “Novo Mundo”, a nova “América”, não fica mais nesta região da Pangeia, creio eu. Para enfrentar estes mares turbulentos, com temeridade, é necessário aceitar o futuro/presente como a verdadeira bússola e buscar nossos interesses onde eles realmente se encontram. Os filhos dos duzentos milhões de brasileiros reclamam esta lucidez e ousadia.
Sugiro aos amigos que leiam a matéria do Estadão, abaixo:ECONOMIA.ESTADAO.COM.BRBrasil negocia acordo de livre-comércio com a China, diz Guedes – Economia – Estadão