ISSN 2674-8053

O “affair” Xi Jinping @ Vladimir Putin

Oleodutos russos, destaque para “Power of Siberia”

Por anos – e haja anos… – a China e a Rússia/URSS foram os “melhores inimigos”. Irmãos de fé ideológica, separava-os o que embasa muitos relacionamentos entre as nações: a disputa pelo poder. Ou seja, o credo comunista não foi suficiente para matizar tal realidade geopolítica.

As raízes deste conflito remontam à época em que Mao Zedong e suas tropas entraram na Cidade Proibida, em outubro de 1949. Cabe recordar, aliás, que naquele momento Moscou apoiava o governo nacionalista de Chiang Kai-shek, que os maoístas “expulsaram” para Taiwan. Além do mais, Mao tinha marcado distância à ortodoxia ideológica soviética e desenvolvido a sua própria, baseada mais nas condições do campesinato chinês do que no operariado urbano da URSS.

A vitória comunista na Guerra Civil Chinesa tornava, porém, por mútua conveniência, necessária a aliança entre os dois regimes “irmãos”. Para concretizá-la, logo após a vitória em Pequim, ainda em dezembro daquele mesmo ano, Mao foi para Moscou na que seria a sua primeira e única viagem ao exterior, à exceção de um retorno à URSS, em 1957. A República Popular nascente ainda não se tinha estruturado; assim, ele estimou importante assegurar-se de que a “Nova China” estivesse no “lado direito da História”, ou seja, do regime comunista. Ele acreditava que, para tanto, precisava da bênção de Joseph Stalin e da ajuda soviética, pois a China estava em ruína após anos de guerra, primeiramente com o Japão e depois consigo mesma, tinha poucas indústrias e quase nenhuma infraestrutura. Nela grassavam, ao contrário, uma enorme pobreza e doenças incontroláveis. A URSS, de sua parte, ainda que se recuperando das perdas da II Guerra Mundial, contava com uma indústria moderna, armas atômicas e as ambições de uma superpotência.

Mao permaneceu na União Soviética durante dois meses, com o propósito de obter “as bênçãos de Stalin” para o seu projeto político. Ledo engano… seus anfitriões o receberam com frieza, e até desdém. E ainda que os dois “parceiros de fé” tenham assinado uma aliança formal, em 14 de fevereiro de 1950, o período de confrontações – veladas, ou não – que se seguiu intensificou-se ainda mais na década de 60, quando Nikita Kruschev liderou a URSS. Moscou pretendia tratar Pequim como mais um dos seus satélites, ao estilo dos países da Europa Oriental, enquanto que os dirigentes da República Popular exigiam um tratamento em condições de igualdade..

Mas o tempo passou e os dois países seguiram caminhos distintos: enquanto a União Soviética se esfacelava com a “perestroika”, a “glasnost”, a queda do muro de Berlim, e o governo errático de Boris Yeltsin, os chineses, embalados pelas reformas econômicas de Deng Xiaoping e dos líderes que o seguiram no processo de desfazimento da economia maoísta e da abertura da China para o mundo – a tal da “economia socialista de mercado” – tornariam a sua economia na segunda maior do planeta, com o propósito de assumir a liderança ainda neste século (se o “China Dream”, filosofia político-ideológica cunhada por um Professor da Academia de Defesa da China, Liu Mingfu, alardeada amiúde por Xi Jinping, se concretizar).

Inverteram-se, então, os papéis? Será?

O que é a Rússia de Vladimir Putin?…Eu tive o privilégio de servir por quase um ano em Astana, no Cazaquistão, ainda durante o “reinado” de Nursultan Nazarbaiev. Acho que somente a “experiência de campo” permite avaliar a “presença abstrata” de Moscou na mente dos ex-membros da União Soviética. A “eterna Rússia” ainda se considera a “eterna Rússia” e, por cima, ainda preserva tal imagem junto às suas ex-repúblicas. Estas, muito jovens (?), com apenas 28 anos de existência, ainda buscam um espaço e uma identidade. Neste “vácuo” momentâneo, a Rússia mantém seu “soft power” ameaçador/sedutor, e teima em considerar sua vizinhança como seu “quintal”.

E ainda consegue expandir sua imagem de poder ao redor do mundo. Senão como explicar a presença – e irradiação – da que é “apenas” a 13ª economia mundial (abaixo do Brasil, portanto)? É claro que estou simplificando muitíssimo, mas o resultado é o mesmo: com ou sem seu comércio de armamentos, a energia nuclear, e etc., a presença da Rússia, permanece vívida e extremamente atuante, e se espraia por várias regiões do planeta (Venezuela, Síria, Ucrânia, e até na vida política dos EUA…).

Sombras do passado, “engodo”, ou estratégia consumada, com – ou sem – razão?

É aí que Putin e Xi se juntam…líderes de dois grandes países vizinhos, inseridos numa região particularmente complexa – Coreias, Japão, Oriente Médio, etc, -, num mundo cada vez mais exposto à dicotomia globalização X isolacionismo, numa pós-economia mundial em acelerada mutação – tecnologia 4 e 5G –, o catálogo de assimetrias e simetrias é enorme, assim como os desafios.

E simetria é o que estamos vendo, por ora, entre as lideranças russa e chinesa: Putin participou das duas Cúpulas de Pequim patrocinadas por Xi sobre o projeto “One Belt, One Road Initiative”, que ambiciona unir a Ásia à África e à Europa, no processo de restaurar a que foi o maior veículo de expansão comercial – e cultural – da História da humanidade; eles se encontram frequentemente em visitas bilaterais – Putin foi o “convidado de honra” das celebrações do 70º aniversário da Revolução Comunista, em Pequim; ambos compartilham, com maior ou menor ênfase, visão similar quanto às crises na Síria e na Venezuela; veem a questão islâmica da mesma ótica; são membros do BRICS, e por aí vamos…

O que podemos depreender disto?

Acredito que ambos vêm a geopolítica e a geoeconomia mundial centrada no Ocidente como entrando no seu ocaso: a “guerra comercial” entre a RPC e os EUA seria o seu sintoma mais evidente. Neste contexto, ambos acreditam ter um papel a desempenhar no mundo que se insinua. Acho, também, que ambos – potências nucleares – não desejam criar uma “détente” asiática (a maior parte do território russo está situada na Ásia), caso a disputa por poder se “bilateralize” novamente…e também acreditam ser parceiros no enfrentamento à “America First” de Donald Trump.

E ambos julgam que a energia será um dos temas definitórios no mundo que se conforma. É neste contexto que lançaram hoje um gasoduto gigante ligando os dois países, como parte de um acordo de US $ 400 bilhões que cimentará a Rússia como o maior exportador de gás do mundo. Tema, aliás, da maior importância no roteiro da “Nova Rota da Seda” dos chineses. Em entrevista de vídeo durante uma elaborada cerimônia televisionada, Putin e Xi saudaram o oleoduto “Power of Sibéria” como um símbolo da cooperação bilateral. Nas palavras de Putin para Xi: “today is remarkable, a truly historic event not only for the global energy market, but first of all for us and for you, for Russia and China”. Ao que o líder chinês respondeu: “China-Russia relations are entering a new era”…

O passado é, porém, indelével e a memória permanece como exemplo – e lição. Repito sempre aos meus alunos que nas relações internacionais “nada é branco, nada é preto, tudo é cinza”…Quais serão os tons deste “affair”, o futuro dirá…

A notícia “passou batido” na imprensa brasileira. Referenda o nosso distanciamento dos temas internacionais mais importantes. Por isto, recomendo aos amigos que leiam a matéria do

“The Daily News” Vladimir Putin and Xi Jinping open giant gas link

Vladamir Putin and Xi Jinping discussed the new ‘Power of Siberia’ pipeline during an elaborate televised ceremony. The 3,000km pipeline will supply

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.