A matéria do Estadão de 31/5/2020 -“Pandemia faz acelerar rejeição à globalização” – levanta uma questão que está na cabeça da maioria dos analistas…e de todos nós: será a Covid-19 que devasta o planeta um ( o ) fator decisivo para o aprofundamento do processo de “desglobalização” da economia?
E será que este processo é irreversível, ou apenas um hiato “nacionalista” que testemunha a resistência do sistema internacional ao que seria o processo de realinhamento do eixo geoeconômico em direção à Bacia do Pacífico, tal como insistem analistas mais radicais?
Segundo a matéria, “o mundo já vinha experimentando políticas protecionistas e guerras comerciais … Depois de atingir seu pico no início dos anos 2000, o comércio global e os investimentos diretos estrangeiros sofreram uma diminuição em termos de participação no PIB mundial a partir da crise de 2008”. No final da última década, sobretudo após a crise, a redução das barreiras aos fluxos transfronteiriços de bens, serviços, investimentos e informações, submeteu a globalização a uma severa pressão. Políticos populistas, em muitos países, acusavam-se mutuamente de vários equívocos econômicos e pressionaram para que acordos comerciais fossem revistos. De sua parte, os países em desenvolvimento argumentam que, já há décadas, as regras que regem o comércio internacional são profundamente injustas. Mas por que queixas semelhantes estão agora emanando dos países desenvolvidos, justamente eles que foram os que estabeleceram a maioria destas mesmas regras?
Estas reflexões nos levam inelutavelmente à Ásia, e à China.
Qual será o papel da República Popular em todo este episódio? Uma explicação simples, ainda que necessariamente incompleta, para este fenômeno pode ser deduzida se focarmos a competição que se acirrou nas décadas de 60 e 70 do século passado entre os países industrializados na busca de abrir mercados e reduzir custos de produção para as suas empresas, por meio de mão-de-obra abundante e barata – e “dócil”, diria eu – sobretudo dos países asiáticos, “treinados” na cartilha do colonialismo. Para um observador cínico, os esforços atuais dos países desenvolvidos para reescrever as regras parecem constituir uma tentativa, não de nivelar o terreno da disputa, mas de frustrar, senão eliminar, a concorrência…Ou seja, periga o “feitiço de se voltar contra o feiticeiro”?
Neste universo rapidamente cambiante, está sendo muito complicada a aceitação pelas economias avançadas de que a dinâmica do mundo do século XXI mudou, e de que é necessário conviver com paradigmas novos e distintos nas relações internacionais: o continente asiático tornou-se um fator definitório e indescartável na economia globalizada. E esta presença, irreversível, ao que parece, instiga sentimentos ambíguos. De um lado, respeito pelo despertar de um gigante de história muito antiga; e de outro, temor das consequências que este eventual protagonismo possa causar. Mais que tudo, a meu ver, evidencia-se o despreparo dos países centrais para lidar com um universo civilizacional que, por não entenderem, julgam a partir dos seus próprios conceitos, e preconceitos.
Na verdade, acostumado a exportar seus valores e a impor seus padrões civilizatórios como “verdades absolutas” e perenes sobre mais da metade da massa humana, o Ocidente não tem sabido lidar com o novo fenômeno, qual seja, que não será mais possível situações como as “Guerras do Ópio”, de 1842 e 1860, para impor à China imperial o consumo da droga a fim de equilibrar a balança comercial bilateral deficitária para a Coroa inglesa; ou a abertura forçada do Japão “Tokugawa” às potências ocidentais; ou o fim melancólico do Raj britânico, com as sequelas que deslanchou por todo o planeta. Ou, ainda pior, impingir uma “ordem” político-religiosa “à la Ocidental” ao Oriente islâmico.
No caminho inverso, tampouco estão as sociedades asiáticas preparadas para interagir – “civilizacionalmente” e não apenas economicamente – sem rancores e preconceitos, com seus antigos colonizadores. Isto pude constatar nos meus dezesseis anos de vivência nos países asiáticos. Os mesmos estereótipos com que o Ocidente olha para o Oriente são correspondidos “mutatis mutandis” pelos orientais. Se não, tente abordar um japonês idoso numa rua de Tóquio para pedir uma direção, como eu fiz…”meninos, eu vi”…
E é neste cenário que se coloca a luta contra a pandemia e a demonstração que os chineses têm-se empenhado em dar da sua capacidade de curvar a doença: após um período obscuro em que as autoridades negaram-se a assumir as evidências da origem dos vírus, não somente tomaram atitudes radicais, como “fechar” imediatamente uma cidade do porte de Wuhan, senão também tornaram-se os principais manufatureiros dos aparelhos respiratórios e estão prestando assistência técnica a vários países. Culpa… ou estratégia para consolidar uma imagem de país confiável e amigo? Afinal, eles têm a hegemonia do planeta 5G como uma obsessão!
Na contramão, D.T., após um curto período em que louvou as iniciativas de Xi Jinping na crise, a partir do momento em que assistiu à transformação dos Estados Unidos no epicentro da pandemia foi “azedando” o seu discurso, como sabemos, a ponto de acusar a RPC de “fabricar” o “cinovirus” (com objetivos obscuros); e, “breaking news”, retirar o país da Organização Mundial da Saúde. A alegação? Que a OMC “privilegia” a China e não está cumprindo bem a sua missão.
Em plena campanha à reeleição, D.T. precisa de um “inimigo” sobre quem descarregar a frustração e a péssima imagem da sua atuação neste triste episódio, e tentar assegurar a sua reeleição: tática sobejamente conhecida, aliás (“manjada”, dizia-se no meu tempo…). E fica a pergunta que não quer se calar: “guerra comercial” + “cinovirus” = tempestade perfeita?
Isto nos remete ao início deste texto: estariam os Estados Unidos, hegemon do século XX, retaliando, por temor, o pretenso hegemon do século XXI? Como disse Omar Kayan: “…os cães ladram e a caravana passa…”. Em qual direção?
Sugiro aos amigos que leiam a matéria do Estadão reproduzida abaixo
Pandemia faz acelerar rejeição à globalização
Beatriz Bulla, correspondente – Washington – 31/05/2020 17h38O
mundo já vinha experimentando políticas protecionistas e guerras comerciais que fizeram com que especialistas alertassem para uma trajetória de desglobalização nos últimos anos. Depois de atingir o pico no início dos anos 2000, o comércio global e o investimento direto estrangeiro tiveram uma diminuição como proporção do PIB mundial a partir da crise de 2008. Agora, a pandemia de coronavírus casada com a maior recessão desde a crise de 1929 deve aprofundar a tendência do que alguns chamam de “slowbalization”, ou a desaceleração da globalização como conhecida até hoje.
A interrupção no processo de globalização já aconteceu antes na história, mas desde o fim da Segunda Guerra Mundial até a crise econômica de 2008 o mundo vinha aumentando o intercâmbio de bens, investimentos, serviços e tecnologia. A assinatura de um primeiro acordo comercial entre Washington e Pequim no final de 2019 lançou esperanças de que 2020 fosse mais próspero para o comércio internacional, mas a crise atual indica que o mundo verá a disrupção das atuais cadeias globais de produção impulsionada por políticas protecionistas, busca por uma produção regionalizada e intensificação das tensões geopolíticas.[ x ]
O Fundo Monetário Internacional projeta uma queda de 11% no comércio mundial neste ano, sem plena recuperação em 2021. A Organização Mundial do Comércio tem cenários mais sombrios: nas estimativas otimistas, o comércio cairá 13%. Nas pessimistas, um terço do comércio mundial deve ser perdido neste ano. As projeções sobre fluxo de investimento também indicam perdas de dois dígitos.
Ao atingir a China no final do ano passado, o coronavírus causou a paralisação do país apontado como “fábrica global”, em razão da sua importância na exportação e nas cadeias de produção. Wuhan, cidade onde a propagação do coronavírus foi inicialmente identificada, é sede de produção chinesa para automóveis e aço, além de concentrar centenas de empresas multinacionais. Com fábricas fechadas, circulação de pessoas limitada e demanda interna paralisada, o primeiro sinal vindo da China foi preocupante para a cadeia de produção global. As importações chinesas caíram 4% em janeiro e fevereiro, comparado com o mesmo período do ano anterior, enquanto as exportações caír am 17%.
Dependência
A crise também escancarou uma dependência acentuada da China que acendeu sinais de alerta. Em 2018, o gigante asiático foi responsável por 43% dos equipamentos de proteção individual, como luvas e máscaras, de todo o mundo. A preocupação com um eventual apagão na produção chinesa fez crescer as tendências de regionalização e de busca por parcerias mais próximas.
Barry Eichengreen, economista e professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, afirma que algumas vantagens competitivas de países de baixa renda – como especialidade em operações de montagem e fornecimento de insumos – serão perdidas “à medida que países avançados começarem a encurtar e remodelar suas cadeias de produção”.
“É improvável que os apelos a um novo compromisso pela globalização ganhem força depois da pandemia de covid-19. Os que desejam ver a globalização preservada devem concentrar esforços em minimizar as disrupções causadas pelo período de desglobalização que virá e em preparar o terreno para um processo mais sustentável depois disso”, escreveu o economista Mohamed A. El-Erian, principal conselheiro econômico da Allianz e membro do comitê externo criado pelo FMI para resposta à crise causada pelo coronavírus, em artigo para o site Project Syndicate.
Para o economista, o pé no freio na integração internacional será adotado simultaneamente por governos, empresas e pelas famílias. Do lado corporativo, argumenta El-Erian, a valorização de cadeias de suprimento global deve dar lugar a uma abordagem mais localizada, ao passo que governos irão se esforçar para garantir uma produção segura de produtos de interesse nacional.
O movimento dos países até agora foi o de autoproteção. O governo americano entrou em rota de colisão com aliados, ao invocar a Lei de Proteção de Defesa para manter no país e evitar exportação de equipamentos de proteção médicos. A ação americana foi criticada por parceiros como o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, e por analistas, que vislumbram não apenas o risco de retaliação como também acham que isso servirá de estímulo para que outras nações pensem em nacionalizar a produção feita por empresas dos EUA com operação no exterior. Na União Europeia, há recomendação para que governos tenham uma dose extra de vigilância para proteger a indústria estratégica de eventuais investimentos estrangeiros feitos neste momento que possam colocar em risco áreas essenciais para a região.
Vácuo
Para o especialista em comércio Douglas Irwin, do Peterson Institute for International Economics, o risco de uma “reação exagerada” e propensa ao protecionismo por parte dos países é agravado pelo vácuo de liderança no sistema comercial global, com os Estados Unidos longe de desempenharem o papel que tiveram em outros momentos de crise. Com o pano de fundo do vírus, a tensão entre EUA e China voltou a entrar em ritmo de escalada.
Analistas apontam que é cedo para estimar o impacto real da disrupção causada pela crise – e a janela de projeções dos organismos internacionais, que têm traçado mais de um cenário possível, confirmam as incertezas. O comum acordo, no entanto, é de que o panorama global irá mudar. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.