ISSN 2674-8053

China vs Estados Unidos = Covid-19 vs Desglobalização

A matéria do Estadão de 31/5/2020 -“Pandemia faz acelerar rejeição à globalização” – levanta uma questão que está na cabeça da maioria dos analistas…e de todos nós: será a Covid-19 que devasta o planeta um ( o ) fator decisivo para o aprofundamento do processo de “desglobalização” da economia?

E será que este processo é irreversível, ou apenas um hiato “nacionalista” que testemunha a resistência do sistema internacional ao que seria o processo de realinhamento do eixo geoeconômico em direção à Bacia do Pacífico, tal como insistem analistas mais radicais?

Segundo a matéria, “o mundo já vinha experimentando políticas protecionistas e guerras comerciais … Depois de atingir seu pico no início dos anos 2000, o comércio global e os investimentos diretos estrangeiros sofreram uma diminuição em termos de participação no PIB mundial a partir da crise de 2008”. No final da última década, sobretudo após a crise, a redução das barreiras aos fluxos transfronteiriços de bens, serviços, investimentos e informações, submeteu a globalização a uma severa pressão. Políticos populistas, em muitos países, acusavam-se mutuamente de vários equívocos econômicos e pressionaram para que acordos comerciais fossem revistos. De sua parte, os países em desenvolvimento argumentam que, já há décadas, as regras que regem o comércio internacional são profundamente injustas. Mas por que queixas semelhantes estão agora emanando dos países desenvolvidos, justamente eles que foram os que estabeleceram a maioria destas mesmas regras?

Estas reflexões nos levam inelutavelmente à Ásia, e à China.

Qual será o papel da República Popular em todo este episódio? Uma explicação simples, ainda que necessariamente incompleta, para este fenômeno pode ser deduzida se focarmos a competição que se acirrou nas décadas de 60 e 70 do século passado entre os países industrializados na busca de abrir mercados e reduzir custos de produção para as suas empresas, por meio de mão-de-obra abundante e barata – e “dócil”, diria eu – sobretudo dos países asiáticos, “treinados” na cartilha do colonialismo. Para um observador cínico, os esforços atuais dos países desenvolvidos para reescrever as regras parecem constituir uma tentativa, não de nivelar o terreno da disputa, mas de frustrar, senão eliminar, a concorrência…Ou seja, periga o “feitiço de se voltar contra o feiticeiro”?

Neste universo rapidamente cambiante, está sendo muito complicada a aceitação pelas economias avançadas de que a dinâmica do mundo do século XXI mudou, e de que é necessário conviver com paradigmas novos e distintos nas relações internacionais: o continente asiático tornou-se um fator definitório e indescartável na economia globalizada. E esta presença, irreversível, ao que parece, instiga sentimentos ambíguos. De um lado, respeito pelo despertar de um gigante de história muito antiga; e de outro, temor das consequências que este eventual protagonismo possa causar. Mais que tudo, a meu ver, evidencia-se o despreparo dos países centrais para lidar com um universo civilizacional que, por não entenderem, julgam a partir dos seus próprios conceitos, e preconceitos.

Na verdade, acostumado a exportar seus valores e a impor seus padrões civilizatórios como “verdades absolutas” e perenes sobre mais da metade da massa humana, o Ocidente não tem sabido lidar com o novo fenômeno, qual seja, que não será mais possível situações como as “Guerras do Ópio”, de 1842 e 1860, para impor à China imperial o consumo da droga a fim de equilibrar a balança comercial bilateral deficitária para a Coroa inglesa; ou a abertura forçada do Japão “Tokugawa” às potências ocidentais; ou o fim melancólico do Raj britânico, com as sequelas que deslanchou por todo o planeta. Ou, ainda pior, impingir uma “ordem” político-religiosa “à la Ocidental” ao Oriente islâmico.

No caminho inverso, tampouco estão as sociedades asiáticas preparadas para interagir – “civilizacionalmente” e não apenas economicamente – sem rancores e preconceitos, com seus antigos colonizadores. Isto pude constatar nos meus dezesseis anos de vivência nos países asiáticos. Os mesmos estereótipos com que o Ocidente olha para o Oriente são correspondidos “mutatis mutandis” pelos orientais. Se não, tente abordar um japonês idoso numa rua de Tóquio para pedir uma direção, como eu fiz…”meninos, eu vi”…

E é neste cenário que se coloca a luta contra a pandemia e a demonstração que os chineses têm-se empenhado em dar da sua capacidade de curvar a doença: após um período obscuro em que as autoridades negaram-se a assumir as evidências da origem dos vírus, não somente tomaram atitudes radicais, como “fechar” imediatamente uma cidade do porte de Wuhan, senão também tornaram-se os principais manufatureiros dos aparelhos respiratórios e estão prestando assistência técnica a vários países. Culpa… ou estratégia para consolidar uma imagem de país confiável e amigo? Afinal, eles têm a hegemonia do planeta 5G como uma obsessão!

Na contramão, D.T., após um curto período em que louvou as iniciativas de Xi Jinping na crise, a partir do momento em que assistiu à transformação dos Estados Unidos no epicentro da pandemia foi “azedando” o seu discurso, como sabemos, a ponto de acusar a RPC de “fabricar” o “cinovirus” (com objetivos obscuros); e, “breaking news”, retirar o país da Organização Mundial da Saúde. A alegação? Que a OMC “privilegia” a China e não está cumprindo bem a sua missão.

Em plena campanha à reeleição, D.T. precisa de um “inimigo” sobre quem descarregar a frustração e a péssima imagem da sua atuação neste triste episódio, e tentar assegurar a sua reeleição: tática sobejamente conhecida, aliás (“manjada”, dizia-se no meu tempo…). E fica a pergunta que não quer se calar: “guerra comercial” + “cinovirus” = tempestade perfeita?

Isto nos remete ao início deste texto: estariam os Estados Unidos, hegemon do século XX, retaliando, por temor, o pretenso hegemon do século XXI? Como disse Omar Kayan: “…os cães ladram e a caravana passa…”. Em qual direção?

Sugiro aos amigos que leiam a matéria do Estadão reproduzida abaixo


Pandemia faz acelerar rejeição à globalização

Beatriz Bulla, correspondente – Washington – 31/05/2020 17h38O

mundo já vinha experimentando políticas protecionistas e guerras comerciais que fizeram com que especialistas alertassem para uma trajetória de desglobalização nos últimos anos. Depois de atingir o pico no início dos anos 2000, o comércio global e o investimento direto estrangeiro tiveram uma diminuição como proporção do PIB mundial a partir da crise de 2008. Agora, a pandemia de coronavírus casada com a maior recessão desde a crise de 1929 deve aprofundar a tendência do que alguns chamam de “slowbalization”, ou a desaceleração da globalização como conhecida até hoje.

A interrupção no processo de globalização já aconteceu antes na história, mas desde o fim da Segunda Guerra Mundial até a crise econômica de 2008 o mundo vinha aumentando o intercâmbio de bens, investimentos, serviços e tecnologia. A assinatura de um primeiro acordo comercial entre Washington e Pequim no final de 2019 lançou esperanças de que 2020 fosse mais próspero para o comércio internacional, mas a crise atual indica que o mundo verá a disrupção das atuais cadeias globais de produção impulsionada por políticas protecionistas, busca por uma produção regionalizada e intensificação das tensões geopolíticas.[ x ]

O Fundo Monetário Internacional projeta uma queda de 11% no comércio mundial neste ano, sem plena recuperação em 2021. A Organização Mundial do Comércio tem cenários mais sombrios: nas estimativas otimistas, o comércio cairá 13%. Nas pessimistas, um terço do comércio mundial deve ser perdido neste ano. As projeções sobre fluxo de investimento também indicam perdas de dois dígitos.

Ao atingir a China no final do ano passado, o coronavírus causou a paralisação do país apontado como “fábrica global”, em razão da sua importância na exportação e nas cadeias de produção. Wuhan, cidade onde a propagação do coronavírus foi inicialmente identificada, é sede de produção chinesa para automóveis e aço, além de concentrar centenas de empresas multinacionais. Com fábricas fechadas, circulação de pessoas limitada e demanda interna paralisada, o primeiro sinal vindo da China foi preocupante para a cadeia de produção global. As importações chinesas caíram 4% em janeiro e fevereiro, comparado com o mesmo período do ano anterior, enquanto as exportações caír am 17%.

Dependência

A crise também escancarou uma dependência acentuada da China que acendeu sinais de alerta. Em 2018, o gigante asiático foi responsável por 43% dos equipamentos de proteção individual, como luvas e máscaras, de todo o mundo. A preocupação com um eventual apagão na produção chinesa fez crescer as tendências de regionalização e de busca por parcerias mais próximas.

Barry Eichengreen, economista e professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, afirma que algumas vantagens competitivas de países de baixa renda – como especialidade em operações de montagem e fornecimento de insumos – serão perdidas “à medida que países avançados começarem a encurtar e remodelar suas cadeias de produção”.

“É improvável que os apelos a um novo compromisso pela globalização ganhem força depois da pandemia de covid-19. Os que desejam ver a globalização preservada devem concentrar esforços em minimizar as disrupções causadas pelo período de desglobalização que virá e em preparar o terreno para um processo mais sustentável depois disso”, escreveu o economista Mohamed A. El-Erian, principal conselheiro econômico da Allianz e membro do comitê externo criado pelo FMI para resposta à crise causada pelo coronavírus, em artigo para o site Project Syndicate.

Para o economista, o pé no freio na integração internacional será adotado simultaneamente por governos, empresas e pelas famílias. Do lado corporativo, argumenta El-Erian, a valorização de cadeias de suprimento global deve dar lugar a uma abordagem mais localizada, ao passo que governos irão se esforçar para garantir uma produção segura de produtos de interesse nacional.

O movimento dos países até agora foi o de autoproteção. O governo americano entrou em rota de colisão com aliados, ao invocar a Lei de Proteção de Defesa para manter no país e evitar exportação de equipamentos de proteção médicos. A ação americana foi criticada por parceiros como o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, e por analistas, que vislumbram não apenas o risco de retaliação como também acham que isso servirá de estímulo para que outras nações pensem em nacionalizar a produção feita por empresas dos EUA com operação no exterior. Na União Europeia, há recomendação para que governos tenham uma dose extra de vigilância para proteger a indústria estratégica de eventuais investimentos estrangeiros feitos neste momento que possam colocar em risco áreas essenciais para a região.

Vácuo

Para o especialista em comércio Douglas Irwin, do Peterson Institute for International Economics, o risco de uma “reação exagerada” e propensa ao protecionismo por parte dos países é agravado pelo vácuo de liderança no sistema comercial global, com os Estados Unidos longe de desempenharem o papel que tiveram em outros momentos de crise. Com o pano de fundo do vírus, a tensão entre EUA e China voltou a entrar em ritmo de escalada.

Analistas apontam que é cedo para estimar o impacto real da disrupção causada pela crise – e a janela de projeções dos organismos internacionais, que têm traçado mais de um cenário possível, confirmam as incertezas. O comum acordo, no entanto, é de que o panorama global irá mudar. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.