A propósito de uma matéria do “Fantástico” sobre as bombas no Laos
O programa ”Fantástico” de hoje apresentou uma matéria pungente sobre a questão das minas que ainda não foram desativadas no Laos e que causam enormes danos físicos à população.
Recapitulando a questão:
O bombardeio dos EUA no Laos (1964-1973) foi parte de uma tentativa da “Central Intelligence Agency”/C.I.A. de erradicar o grupo “Pathet Lao”, aliado ao Vietnã do Norte e à União Soviética durante a Guerra do Vietnã (1955-1975). No contexto da Guerra Fria, o Laos, oficialmente neutro, tornou-se um dos principais campos de batalha entre os Estados Unidos e a China / União Soviética.
O empenho dos americanos em salvaguardar a região da influência da China de Mao Zedong fez parte da chamada “Teoria do Dominó”/ “Domino Theory”, um dos esteios da doutrina da política externa americana durante a Guerra Fria. Ela postulava que se um país “caísse nas mãos dos comunistas”, sua vizinhança o seguiria. A autoria desta doutrina é atribuída a John Foster Dulles, ex-Secretário de Estado que se notabilizou pela política de inflexibilidade contra qualquer ameaça comunista à estabilidade regional e mundial que pudesse desencadear uma guerra nuclear.
No seu discurso de despedida, em 1961, o presidente Dwight Eisenhower aprovou o treinamento pela CIA das forças anticomunistas que atuavam nas montanhas do Laos para interromper as rotas de abastecimento comunista que atravessavam a chamada “Trilha Ho Chi Minh”/ “Ho Chi Minh trail”, que servia para conectar o norte e o sul do Vietnã, atravessando o Laos e o Camboja. Os sucessores de Eisenhower na Casa Branca – J.F. Kennedy, Lyndon Johnson e Richard Nixon – aprovaram a escalada do apoio aéreo aos guerrilheiros do sul, ainda que não publicamente.
Bombardeiros americanos lançaram mais de dois milhões de toneladas de bombas de fragmentação sobre o país, quantidade numericamente superior a todas as lançadas durante a Segunda Guerra Mundial, em conjunto. Hoje, o Laos é a nação que mais sofreu bombardeios da História; dos cerca de 3.860 vilarejos que foram objeto de uma pesquisa nacional para se estabelecer um programa de uma ação coordenada de desminagem, em 2017, verificou-se que 2.873 deles ainda sofrem o impacto dos artefatos não desativados.
Historicamente, o país sempre sofreu a interferência de seus vizinhos desde que Fa Ngum fundou o primeiro reino conhecido como “Lan Xang”, ou “O Reino de um Milhão de Elefantes”, em 1353. Fa Ngum conquistou a maior parte do que é o Laos atual, partes do Vietnã e o nordeste da Tailândia, “importando” o budismo theravada (do “Pequeno Veículo”) e, com ele, a cultura “khmer”do reino de Angkor, no Camboja atual. A vizinhança conquistada enfim rebelou-se e os tailandeses resgataram o domínio de grandes faixas do Laos no final dos anos 1700. O que conhecemos como Laos, hoje, foi construído a partir de um amontoado de distintos grupos étnicos, que têm línguas e culturas diversas.
Os europeus chegaram à região em 1893 e a França declarou o Laos como parte da Indochina Francesa. Para ela, ter o país como protetorado era um meio de controlar o rio Mekong, valiosa rota comercial que atravessa todo o sudeste asiático. Entretanto, em 1945, os colonizadores perderam o domínio para as forças de ocupação japonesas, já nos estertores da II Guerra Mundial. Quando as bombas atômicas caíram sobre o Japão, o país declarou sua independência.
Os franceses, entretanto, recuperaram o poder no ano seguinte; o Laos somente alcançaria sua independência em 1954, após a vitória do líder comunista Ho Chi Minh na sangrenta batalha de Diən Biên Phủ. A Conferência de Genebra (abril a julho de 1954) buscou encontrar uma forma de resolver as questões pendentes e discutir a possibilidade de restaurar a paz na Indochina. Fruto dela, o Vietnã viu-se dividido entre Vietnã do Norte e do Sul, e os colonizadores franceses renunciaram às suas reivindicações no Sudeste Asiático. O acordo não foi assinado pelos Estados Unidos, que temiam, na ausência da influência francesa, que o Sudeste Asiático caísse nas mãos das forças comunistas.
A Força Aérea dos EUA começou a bombardear alvos no Laos em 1964, lançando bombas de fragmentação em missões secretas. Os Estados Unidos chegaram a jogar o equivalente a um avião carregado de bombas a cada oito minutos, 24 horas por dia, durante nove anos, de acordo com os analistas. Em 1975, um décimo da população do pais havia morrido e duas vezes mais havia sido ferida; setecentos e cinquenta mil indivíduos, ou seja, um quarto da população, haviam se tornado refugiados.
A “guerra secreta” do Laos deixou milhares de indivíduos aleijados. E as vítimas continuam a aumentar porque a maior parte do território ainda está infestada por artefatos que não explodiram. Estima-se que apenas cerca de 1% dele esteja totalmente liberado.
Em 1963, o Ministério da Saúde do Laos fundou um centro de reabilitação para prestar e coordenar serviços de assistência aos deficientes físicos. Em 1997, o ministério e um grupo de organizações não-governamentais formaram a “Cooperative Orthotic and Prosthetic Enterprise”/ COPE. que fornece próteses para as pessoas que perderam seus membros. É difícil dizer com certeza quantas foram- e ainda estão sendo – afetadas, porque estas explosões ocorrem em aldeias remotas. Infraestrutura precária e inacessibilidade contribuem para que as pessoas com deficiência sejam um grupo desfavorecido dentro de uma sociedade extremamente pobre.
Quando estive no Laos, em 2018, fui visitar a COPE, em Vientiane. Foi uma visita “difícil” para mim: ao tempo em que me impressionei com o trabalho meritório e competente da entidade, fiquei horrorizado com a maldade do ser humano que, como “política de Estado” promove barbaridades deste porte, que afetam a todos, indiscriminadamente, inclusive – e, principalmente -, as crianças despreparadas para enfrentar ameaça tão letal.
Após a visita fui almoçar num restaurante nas redondezas, e usei talheres feitos da matéria da carapaça de metal destas bombinhas: ironia da vida, o material da morte, resgatado, passa a alimentar a vida.
As fotos que tirei e que estão disponíveis neste post, testemunham momentos que me marcaram muito.