ISSN 2674-8053

Autoritarismo: a faca de dois gumes do Sudeste Asiático

PAD Demonstration. Sukhumvit Road. Bangkok. 20th October 2008.

A palavra diversidade pode definir o Sudeste Asiático. São tantos dialetos, etnias, povos e religiões em apenas 4.100.000 km², que se torna consenso a singularidade da região e de todo o subcontinente.

A China de Mao Zedong, é um padrão que se repete atualmente no Sudeste Asiático, quando o governo autoritário deu os primeiros passos para erradicar a miséria e homogeneizar a população criando os esteios da China contemporânea. O processo foi impulsionado por Deng Xiaoping, em 1979, ao iniciar o a abertura do país para o mundo. Como um espelho, o sudeste asiático, marcado por países tão culturalmente diferentes vem convergindo em um padrão intrigante: democracias frágeis, governos autoritários e o desenvolvimento geral da região que mais cresce economicamente no mundo.

Na Indonésia, a eleição de Joko Widodo significou um avanço na esfera política ao elevar à Presidência do país um candidato sem relação com a aristocracia local, ensejando que a qualidade argumentativa e a inteligência prevalecessem sobre as malhas dos contatos e do dinheiro. Na contra-leitura, até o próprio jornal  britânico “The Guardian” definiu o governo de Jokowi como “something of a political fairytale for Indonesia’s young democracy”: os direitos das minorias estão cada vez mais frágeis, a liberdade de expressão está sendo minada e, com os protestos que reúnem mais de 10.000 estudantes, grandes são os rumores de uma  intervenção militar.

Em Myanmar, Aung Sang Suu Kyi enfrenta um dilema diferente. Sua ascensão ao poder foi marcada por grande expectativa devido ao histórico da sua luta contra o governo militar no país. Sua vitória se deu, afinal, graças ao desgaste dos militares frente e à perda da legitimidade do governo junto aos mais jovens e ao clero budista. Portanto, sua consagração somente foi possível devido ao apoio maciço da população, que, como contrapartida, pressiona pela expulsão do grupo étnico muçulmano rohingya do território. O conflito étnico-religioso fez com que, em 2017, aproximadamente 700 mil rohingyas, vítimas de tortura e perseguição em razão de sua expressão religiosa muçulmana em um país budista, que os relegou à condição de apátridas na sua própria terra natal, fugissem e se refugiassem no vizinho Bangladesh. Entretanto, devido à sua percebida negligência com relação ao conflito, preocupada com que os reflexos de uma confrontação entre as duas comunidades estimulasse a retomada dos militares ao poder, Aung Sang Suu Kyi absteve-se de tomar partido. Desta forma, ela também entrou para o clube dos governantes autoritários do sudeste asiático, especialmente após os poucos avanços em direção à liberdade de expressão no território. Em consequência, viu-se ameaçada de ter retirado o Prêmio Nobel da Paz que havia recebido em 1991, e acabou perdendo até mesmo o título de Embaixadora da Consciência concedido pela Anistia Internacional.

Da mesma forma, Rodrigo Duterte havia sido eleito, em 2016, Presidente das Filipinas, com um discurso promissor contra o crime e corrupção no país. No poder, ele cumpriu as suas promessas com excessivo zelo, que resultaram em contínuos assassinatos de traficantes de drogas, mas também de pessoas de classes sociais menos favorecida e opositores ao seu governo, como jornalistas, autoridades judiciais e líderes de governo locais. A Comissão de Direitos Humanos das Filipinas acredita que o número de mortes extrajudiciais soma em 27 mil pessoas. A repressão foi instaurada no país, com até mesmo toque de recolher para jovens às 22 horas. A falta de liberdade de expressão cresce cada vez mais nas Filipinas.

Em contrapartida, é interessante notar que os índices econômicos desses governos autoritariamente orquestrados, crescem, e também em conjunto. Mas essa reviravolta econômica seria de fato tão surpreendente?

Falamos de países que estão recebendo heranças dos “irmãos mais velhos”. Afinal, este crescimento surpreendente teve início quando grandes transnacionais dos países regionais – China e Japão -, como a Nike, foram acusadas de exploração trabalhista e destruição ambiental em seus países de origem, e focaram sua produção naqueles que aceitassem tais devastações como engrenagem para o crescimento.  A palavra japonesa “monozukuri”, que significa literalmente “fazer coisas”, fora a chave para o sucesso do Japão. Na prática, este termo se aplica ao processo de criar réplicas de produtos, aplicando-lhes melhorias. Aliás, este foi o mesmo procedimento que fez com que os trabalhadores japoneses ao longo do século XX absorvessem “know-how” das empresas europeias e estadunidenses, se transformassem em experts, e começassem a produzir endogenamente com tecnologia melhor que a das bases. Foi assim que o primeiro rádio portátil do mundo foi criado em 1955, no Japão, pela Sony. À medida que esses países se especializavam em produções marcadas por tecnologia, seus manufaturados têxteis e “bas de gamme” foram gradativamente terceirizados para os vizinhos do sudeste.

Também não faltaram os acordos de livre comércio e o apoio mútuo para alavancar o crescimento do Subcontinente. Além de estar localizado dentro da Nova Rota da Seda e recebendo investimentos chineses na área de infraestrutura, o Sudeste Asiático também vem participando de diversos organismos internacionais e regionais relevantes para a cooperação. A ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático), por exemplo, estabelece um conjunto de iniciativas para estimular o processo de integração regional, contando, para tanto,  com foros governamentais de discussão, acordos de aproximação econômica e redes de cooperação entre Brunei, Camboja, Indonésia, Laos, Malásia, Myanmar, Filipinas, Singapura, Tailândia e Vietnam.  A própria Declaração da ASEAN prevê a coloração e assistência mútua em matérias de interesse comum nos campos social, cultural, administrativo, de expansão do comércio, melhorias nos transportes e na infraestrutura e de comunicação, que resultem na elevação do padrão de vida das populações dos seus membros. Com a implementação dessa cooperação no bloco, reconheceu-se a necessidade de se estabelecerem programas de investimentos coordenados, dando início ao “Acordo Quadro sobre a Zona de Investimentos Asiática” (ZAI). Este oferece a potenciais investidores estrangeiros um ambiente propício para atividades de produção intensiva, implementação de plataformas industriais e investimentos diretos em toda a região.

Diante do sucesso da ASEAN e da evolução econômica da Ásia do sudeste, foi proposto, em 1989, pelo ex-primeiro ministro australiano Bob Hawke, a criação da “Cooperação Econômica Ásia – Pacífico”/ APEC , que somou os países do outro lado do Pacífico e afastados da “identidade asiática” aos interesses comuns.  Entretanto, a falta de personalidade jurídica do bloco no campo do Direito Internacional, faz com que atualmente a APEC atue principalmente como um fórum de discussão e diálogo sobre temas de interesses mútuos. Ainda que não seja ainda realmente efetiva, esta colaboração demonstra o grande esforço dos países ocidentais da orla do Pacífico de se aproximarem da Ásia.

Neste contexto, fica a pergunta que não quer calar: até quando o Brasil relutará em privilegiar a aproximação comercial com o subcontinente?

Referências:

FACTS AND DETAILS. Cheap Labor Industries in Asia. Disponível em: http://factsanddetails.com/asian/cat62/sub408/item2555.html. Acesso em: 20 mar. 2020.

FM2S. O que o monozukuri significa no Lean. Disponível em: https://www.fm2s.com.br/o-que-o-monozukuri-no-lean/. Acesso em: 20 mar. 2020.

THE ECONOMIST. Rodrigo Duterte’s lawless war on drugs is wildly popular. Disponível em: https://www.economist.com/briefing/2020/02/20/rodrigo-dutertes-lawless-war-on-drugs-is-wildly-popular. Acesso em: 20 mar. 2020.

Anne Marie Gattini Nassif
Anne Marie Gattini Nassif é estudante de Relações Internacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing/ESPM. Tem interesse no aprendizado de outras culturas, principalmente pelo estudo de diferentes idiomas. É atendente voluntária no Centro de Referência e Atendimento ao Imigrante (CRAI), em São Paulo, e Analista Júnior no Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos/NENA, da ESPM.