No artigo “O Japão pós-Shinzo Abe” (02/09/20), eu me referi à renúncia inesperada de Shinzo Abe ao cargo de Primeiro-Ministro do Japão, em 28 de agosto passado. Agora, gostaria de tratar com os amigos da questão da sua sucessão. Conforme mencionei anteriormente, com o fim do mandato Abe, que durou oito anos, encerrou-se o mais longo ciclo de estabilidade na governança do Japão contemporâneo; muito devido à sua liderança, que buscou imprimir sua marca pessoal na gestão, sobretudo no que toca a dois temas fundamentais.
O primeiro foi seu esforço – frustrado – de revisar a rigidez pétrea do artigo 9º, da Constituição de 1947, – a “pacifista” – delineada pelos vencedores da II Guerra Mundial nos escombros nucleares de Hiroshima e Nagasaki, a qual estipula que “the Japanese people forever renounce war as a sovereign right of the nation and the threat or use of force as means of settling international disputes”: compromisso de um POVO antes que de um governo. Isto certamente fazia sentido em 1945, mas está-se tornando cada vez mais questionável para o Japão contemporâneo, ainda que a maioria da população insista na sua observância.
O segundo desafio com o qual o PM Abe se defrontou foi a mudança acelerada do cenário regional, impulsionada pela liderança cada vez mais inconteste da China, pela emergência dos países do sudeste asiático e pelas proezas tecnológicas dos “chaebols” empresariais sul-coreanos – Samsung, LG, Hyundai, etc…-, que invadem mercados mundo afora e deslocam “gigantes” americanos e europeus – e alguns japoneses – até nestes nossos pagos. E, é claro, sem nos esquecermos das “travessuras” missilísticas do vizinho norte-coreano.
Para suceder Shinzo Abe – e por sua inspiração -, a Dieta elegeu Yoshihide Suga. O novo Primeiro-Ministro serviu como secretário de gabinete durante o mandato de seu antecessor e apresentou-se como o candidato da “continuidade”, seguindo a linha conservadora do partido (eternamente) majoritário da Dieta, o Partido Liberal Democrata/PLD.
O primeiro grande desafio que Suga deverá enfrentar, segundo os analistas, é equacionar o percebido fracasso da política econômica de Shinzo Abe – a “Abenomics” – que fora alardeada como a mola motora que resgataria o país de anos de crescimento anêmico e acarretara o desestímulo aos investimentos e a estagnação do mercado interno. Entretanto, a chamada “política da três flechas” – politica monetária agressiva, flexibilidade fiscal e reformas estruturais – deixou como “espólio”, segundo esses analistas, antes um alerta para outros países ricos “envelhecidos”, mormente os europeus: o de que suas populações, com abundância de capital e excesso de poupança, instaladas num padrão de vida razoavelmente homogêneo e na vigilância xenófoba contra os imigrantes, estão sendo crescentemente “assaltadas”, tanto fisicamente pelos refugiados do chamado “Terceiro Mundo” quanto economicamente pelo ímpeto desenvolvimentista, tecnológico inclusive, dos seus “ex-vassalos”, asiáticos, sobretudo. A população japonesa, cada vez mais idosa e recalcitrante em abrir-se para a imigração estrangeira que possa cobrir o déficit que a crescente “despopulação” de 300 mil habitantes/ano vem criando, encaixa-se neste paradigma.
Neste contexto, para alguns analistas, reativar a economia do Japão exigirá que o Primeiro-Ministro Suga realize uma ruptura clara com relação ao seu antecessor e patrono e realize reformas estruturais efetivamente abrangentes (a “terceira flecha”, que Abe não concretizou). Para esta tarefa hercúlea, ele necessitará do apoio dos parlamentares, sobretudo dos membros do seu partido e do aliado budista Komeito, a segunda maior bancada da Dieta. Para os especialistas, a melhor estratégia seria convocar rapidamente uma eleição geral para confirmar o apoio da população, de que necessitará, pois promover reformas estruturais abrangentes do tipo que seu antecessor em grande parte evitou, por motivos políticos, exigirá que ele enfrente poderosos “lobbies” e “vested interests” – muitos deles em seu próprio partido. Para tanto, o PM terá que mobilizar a opinião pública habilmente em vez de atuar nos bastidores com os burocratas de elite, como fazia no seu papel de secretário do Gabinete de Abe. Suga terá que inspirar o país. Seu primeiro teste será liderar a resposta do governo à pandemia da Covid-19, porque os sinais confusos do governo Abe sobre se mais restrições são preferíveis a mais atividade econômica – ou, se, de fato, seria o contrário – em muitas oportunidades confundiram o público japonês. E depois, debruçar-se sobre as Olimpíadas do ano que vem (?).
Embora Suga tenha-se mostrado um gerente capaz como secretário de gabinete de Abe, seu novo papel exigirá que ele não só administre, mas também lidere. De personalidade reservada, algumas das suas observações durante sua recente campanha ao cargo entretanto apresentam a perspectiva, para alguns especialistas, de que ele possa ser um líder mais ousado e corajoso do que muitos esperam. Para tanto – esforço maior – ele terá que “provar a que veio”, pois, diferentemente de seus antecessores, Taro Aso e Shinzo Abe, por exemplo, que provinham de famílias politicas poderosas e “aristocráticas”, o “background“ de Suga é de agricultores de classe média, e a linhagem familiar ainda conta no Japão, sobretudo nos ambientes empresarial e político.
Neste contexto, seu principal “handicap”, para os analistas, reside na arena internacional, sobretudo na vizinhança regional. Comparando, Abe se desempenhava com desenvoltura nesta esfera e havia estabelecido um leque abrangente de relacionamentos com os demais líderes mundiais, sobretudo com Donald Trump, que lhe dava respaldo – e conivência – na sua “disputa” com Xi Jinping pelo poder regional. A propósito, o Professor Minxin Pei, da Faculdade Claremont McKenna, da Califórnia, adverte que a escalada das tensões EUA-China tornará cada vez mais difícil para o novo PM evitar tomar partido, especialmente em questões de tecnologia e acordos sobre segurança regional e mundial. Segundo o acadêmico, o ex-primeiro-ministro Shinzo Abe conseguiu encontrar um delicado equilíbrio diplomático entre a China e os Estados Unidos. Mas, à medida que as tensões sino-americanas aumentam, Suga terá maior dificuldade em evitar tomar partido, especialmente em questões tecnológicas e temas afetos à segurança, e ambos – EUA e China – são fundamentais para a paz e a prosperidade do Japão: a América é o fiador da sua segurança e o seu segundo maior parceiro comercial, enquanto que a China é seu maior parceiro comercial e o poderoso “next door neighbor”.
Cabe também recordar que as relações entre os dois vizinhos são historicamente complexas, mormente no que toca ao capítulo irresolvido da II Guerra Mundial; os chineses jamais esqueceram as atrocidades praticadas pelas tropas japonesas em seu território, sobretudo a questão tóxica das “comfort women”. Ademais da disputa pela soberania das Ilhas Senkaku (Diaoyu, para os chineses), no leste do Mar da China, outro tema de grande sensibilidade entre ambos é o da tecnologia 5G, na qual a empresa chinesa de telecomunicações Hwawei mantém a liderança mas depende de insumos e peças produzidas por empresas japonesas. Shinzo Abe, num gesto significativo para agradar a administração Trump havia sutilmente proibido a gigante chinesa de participar da construção da rede 5G do Japão. É ainda incerto se esta decisão permanecerá válida na atual administração diante do dilema “custos-benefícios” que ela poderá propor para as empresas japonesas de alta-tecnologia.
São muitas as questões, e ainda é muito cedo para as respostas, evidentemente. Entretanto, uma delas é desde já oportuna: o quanto Shinzo Abe, nos bastidores, permitirá que seu sucessor – e “pupilo” – imprima marca própria, e o quanto o PLD o acompanhará nas decisões que tiver que tomar. Bem…e os chineses, então… Muito boa sorte!
Sugiro aos amigos que leiam a matéria do Estadão abaixo:Partido governante do Japão elege Yoshihide Suga como sucessor de Shinzo Abe – Internacional – Estadão
[…] Leia também a parte II deste artigo em “O Japão pós-Shinzo Abe (II)“ […]