ISSN 2674-8053

Parem de falar que estamos numa nova Guerra Fria

Charge postada no Global Village Space

É comum vermos análises falando que estamos entrando numa nova Guerra Fria. Geralmente isso acontece a cada movimento mais incisivo feito pelo governo Chinês. Basicamente a ideia é que os Estados Unidos estariam em um polo de poder e a China viria para ocupar o polo oposto, questionando o poderio norte-americano. Ainda que possa ser verdade a questão das tensões em torno das projeções de poderes, é incorreto dizer que isso é uma Guerra Fria.

O que foi a Guerra Fria? De uma forma mais superficial foi o embate indireto entre Estados Unidos e União Soviética (basicamente sustentado na corrida atômica). Em termos mais estruturais, a grande questão foi a competição entre dois modelos de organização político-econômica auto-excludentes.

Em última instância, o capitalismo precisa ampliar seus mercados e diminuir a relevância do Estado para que a economia possa fluir sem muitas interferências externas à lei da oferta e da procura. No extremo, o que deveria ocorrer é a criação de um mercado global e o potencial desaparecimento do Estado.

No comunismo, por sua vez, o processo econômico deve ser planificado e decidido pelo Estado, de forma a evitar o acúmulo de riquezas por apenas uma parcela da sociedade. O Estado comunista é uma etapa necessária para fazer a revolução e, ao final, deveria acabar, passando o controle econômico diretamente para as pessoas.

Em ambos os casos, a previsão de sucesso total significa o desaparecimento do Estado como forma de organização política, formando apenas um grande sistema de alcance global. Essa é a razão de o avanço de uma das partes, durante a Guerra Fria, também era entendido com a perda do outro. A corrida atômica era mais um elemento desta competição, mas logo foi ultrapassada como um instrumento militar (quando a capacidade de destruição acumulada era maior do que aquilo que o próprio planeta poderia aguentar) para se transformar numa forma de demonstração de poderio e, assim, de comprovação sobre o sucesso do modelo proposto.

O que vemos hoje não tem relação com esse conflito. Não resta dúvida de que a China apresenta vetores de poder com projeções globais em diversas áreas, como a militar, a econômica, a política e, cada vez mais, a cultural. Mas, diferente do que ocorria na Guerra Fria, não há uma competição por modelos auto excludentes. A questão aqui está sobre liderança e, assim, sobre singularidades de um mesmo modelo, mas não sobre o modelo em si. A China não questiona a existência do capitalismo, ao contrário, aprendeu a operar nas regras do capitalismo. Não questiona a existência de democracias como forma de governo, ainda que adote um modelo centralizado e, na concepção ocidental, não democrático.

Depois de décadas tendo nos Estados Unidos o maior defensor e o símbolo mais consolidado de defesa de um modelo, acabamos acreditando que qualquer questionamento a essa liderança ou mesmo simbolismo significa uma ameaça ao modelo. Não percebemos que não se trata de um novo polo de poder com uma proposta alternativa, o que nos levaria a uma nova estrutura bipolar. Mais do que isto, hoje temos um questionamento de ordem sistêmica, estamos vivendo num momento de reestruturação do sistema internacional, com novos fluxos de relações e com a consolidação de outros atores com grande capacidade de influência sobre os fluxos internacionais.

Ao olharmos especificamente a realidade brasileira, compreender o que está acontecendo é ainda mais importante. Não vivemos num momento de nós-contra-eles ou de certo versus errado. Vivemos num momento no qual as dinâmicas internacionais são mais fluidas. Não é o momento de seguirmos alinhamentos automáticos nem ideológicos, mas sim de compreender como podemos atuar num mundo mais dinâmico e com menos certezas do que aquele da Guerra Fria.

A seguir indico a leitura de alguns artigos que fazem a análise defendendo que estamos entrando numa nova Guerra Fria. Para julgamento de cada um.

BBC – O mundo está entrando em uma nova Guerra Fria?

El País – EUA x China: cenários da nova guerra fria

IstoÉ Dinheiro – A nova Guerra Fria esquenta

Rodrigo Cintra
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X