ISSN 2674-8053

A arrogância do Ocidente e a ascensão da China

Do latim progressus, vem a palavra progresso indica avanço, mudança de algo para melhor em relação ao passado. Ainda que a ideia seja antiga, os contornos que apresenta hoje foram forjados no Iluminismo, alcançando sua “automaticidade” com a Revolução Industrial. Assim, hoje nos acostumamos com a ideia de que hoje estamos numa condição melhor do que ontem e que continuaremos a avançar. Em si a proposta não é descabida, mas carrega o risco de nos tornarmos arrogantes, acreditando que hoje vivemos o que há de melhor (para uma leitura mais filosófica dessa perspectiva indico a leitura de A Rebelião das Massas, de Jose de Ortega Y Gasset).

Especialmente em função das tecnologias, temos provas concretas de que estamos no momento de maior avanço na história da Humanidade. Hoje temos celulares melhores do que os de 5 anos atrás; os avanços da medicina são capazes de salvar mais vidas do que uma geração atrás; os carros elétricos estão se tornando uma realidade cada vez mais presente, nos ajudando a superar a queima de combustíveis fósseis; a neurociência maximiza nossa capacidade de aprendizado em comparação com o que nossos pais conseguiram (sugiro a leitura de O Choque de Civilizações, de Samuel Huntington).

Vivenciando tantas coisas mais avançadas e que, assim confiamos, serão ainda mais avançadas amanhã, nos acostumamos a entender que nós somos a referência. É uma questão de tempo até todas as pessoas possam acessar esse progresso. Em alguns casos, se trata de uma desigualdade na distribuição de renda, dificultando o acesso aos avanços. Em outros, são países que estão atrasados e que, em algum momento, terão que ceder para esses novos. (Sugiro a leitura de O Fim de História e o Último Homem, de Francis Fukuyama).

Inebriados por esse aparente inexorável progresso que vivemos tendemos a analisar o restante do mundo pelas mesmas lentes que nos fazem acreditar na superioridade de nosso tempo. Estão todos avançando para o mesmo destino, então não se trata de um futuro diferente, mas sim de um futuro potencial com mais gente vivendo todo esse progresso. E isso não é diferente com a China, ao menos é o que acreditamos. 

Segundo JP Morgan, a China deverá se tornar a maior economia do mundo em 2027. Outras análises indicam que isso ocorrerá alguns anos depois. O que importa aqui não é exatamente quando, mas a certeza de que assim o será. A partir disto, a discussão se dá em torno do potencial de mercado que teremos, como se a China fosse buscar o “nosso” nível de progresso atual.

Neste momento esquecemos que a civilização chinesa é uma das quatro mais antigas do mundo, com a babilônica, a egípcia e a índia. Por mais que algumas referências sejam iguais, isso não significa que não terão outras. Lógicas medicinais, papel do indivíduo perante a coletividade, formas e significados de consumos de marcas são apenas algumas questões nas quais os chineses divergem da média ocidental. O Dragão chinês estava apenas adormecido na longa história desta civilização, mas não significa que morreu. A consolidação da China como a maior economia do mundo será apenas um dos aspectos de uma nova liderança global. 

Enquanto o Ocidente luta por estabelecer os novos passos do progresso, ignora padrões que virão da China. E eles não são convergentes com o que temos feito por aqui. 

As atuais marcas de luxo (quase totalmente oriundas dos Estados Unidos e Europa), importantes estruturadoras de tendências de consumo, logo se verão cada vez menos relevantes no mercado global. Marcas de luxo chinesas das quais nunca ouvimos falar dominarão o mercado. Ainda que, para nós, elas apareçam de repente, na China já estão em consolidação. Shang Xia, Shanghai Tang, Ochirly e Bosideng são apenas alguns exemplos.

Padrões de estruturação do sistema produtivo e de consumo também serão impactados. Toda a discussão sobre ESG – environmental, social and governance (ambiental, social e governança) será questionada a partir do momento em que a China deixar de ser um consumidor de produtos externos para ser consumidor de sua própria lógica de produção. Uma pequena amostra do que está por vir vem do boicote que os chineses estão fazendo a marcas como Burberry, H&M, Nike e Zara. Estas empresas oficializaram sua preocupação com condições de trabalho análogas à escravidão na região chinesa de Xinjuang, chegando até mesmo à interrupção de compra de produtos desta região. Não foi uma decisão fácil, considerando que esta região produz aproximadamente 20% de todo o algodão do mundo e isso pode levar ao aumento do custo de produção.

A partir da lógica ocidental, a agenda é legítima, buscando forçar a oferta de condições de trabalho mais “humanas”. Mesmo que haja aumento do custo de produção, com a perda relativa de competitividade, as empresas decidiram que isso é uma coisa importante a se fazer. Por outro lado, agora parte da população chinesa começou a boicotar essas marcas com o argumento de que as acusações feitas são uma agressão ao Estado chinês. Algumas plataformas de comércio eletrônico já retiraram essas marcas de seus sites. Ainda que, num primeiro momento, a lógica ESG tenha prevalecido, a dúvida é por quanto tempo.  

O problema não reside nos valores Ocidentais que são, em sua maioria, nobres. O problema é nossa arrogância em não perceber que existem outras propostas culturais, outras formas de se encarar o mundo, e nem todas elas estão dispostas a serem substituídas pelas nossas. Enquanto mantivermos uma atitude arrogante, acreditando que tudo o que os demais querem é ser como nós, estaremos ignorando a emergência de outros valores que poderão se impor sobre os nossos quando menos esperarmos. 

Rodrigo Cintra
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X