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China e Estados Unidos: a “Guerra Fria” do século XXI ?

O ex-primeiro-ministro da Austrália, Kevin Rudd, recentemente “cantou a pedra”, segundo o analista David E. Sanger, do “New York Times” : “ uma Guerra Fria entre Pequim e Washington não é apenas possível, mas provável…”

Esta declaração aguçou ainda mais as suspicácias dos analistas ocidentais. Segundo ele, é verdade “que a China está emergindo como um adversário estratégico muito maior do que a União Soviética jamais foi – uma ameaça tecnológica, uma ameaça militar e um rival econômico”. Para Sanger, “ao tempo em que Pequim está expandindo seu programa espacial, lançando mais três astronautas para sua estação espacial e acelerando seus testes de mísseis hipersônicos destinados a derrotar as defesas antimísseis americanas, os EUA anunciaram que fornecerão tecnologia de submarino nuclear para a Austrália (a aliança AUKUS, americano-britânico-australiana)”. Ainda segundo ele, embora o presidente Joe Biden tenha insistido na Assembleia Geral da ONU que “não estamos buscando uma nova Guerra Fria ou um mundo dividido em blocos rígidos”, suas repetidas referências a um conflito de gerações entre “autocracia e democracia” reviveu para alguns a ideologia dos anos 1950 e 1960”.

Ou seja, arrefece a ênfase na “guerra comercial” de Donald Trump – EUA X RPC – e acirra-se a “guerra ideológica” entre Ocidente “democrático” (i.e. EUA e aliados) e o Oriente (i.e. China “comunista” e alguns mais) ?

Neste cenário, os analistas ocidentais se indagam se seria o “fator Xi Jinping” responsável pela mudança da estratégia “reducionista” da liderança de Pequim da era Deng Xiaoping, que enfatizava a condição de “país em desenvolvimento concentrado na erradicação da pobreza”, para as declarações “ufanistas” da última reunião do Comitê Permanente do PCC, no ano passado, de que a República Popular erradicou a pobreza absoluta em seu território e acelera seus “motores”, sobranceira, para vencer uma nova etapa!

O Professor Jude Blanchette, do “Freeman Chair in China Studies” do “Center for Strategic and International Studies (CSIS)” afirma que Xi Jinping “é um homem com uma missão“ (“Xi Jinping is a man on a mission”). Para ele, desde que chegou ao poder, em 2012, “Xi agiu rapidamente para consolidar sua autoridade política; expurgar o Partido Comunista de uma corrupção endêmica que havia acirrado a insatisfação popular e alimentado o colapso da disciplina partidária; afastou seus inimigos; “domou” os setores de tecnologia e conglomerados financeiros da China; esmagou a dissidência interna e afirmou com vigor a influência da China no cenário internacional. A título de proteger os “interesses centrais” da República Popular, Xi tem confrontado países vizinhos e também os mais distantes — especialmente os Estados Unidos”.

Para Blanchette, Xi está conduzindo uma ampla gama de iniciativas políticas destinadas a nada menos que reformular a ordem global em termos favoráveis ao Partido Comunista Chinês. O primeiro grande “sinal” seria a avaliação de Pequim de que o poder e a influência do Ocidente entraram numa fase de declínio e, como resultado, dado início a uma nova era de multipolaridade, a qual a China poderia “moldar mais ao seu gosto”. Esta visão teria tomado forma quando as guerras dos EUA no Afeganistão e no Iraque se tornaram verdadeiros “atoleiros” e solidificou-se na esteira da crise financeira de 2008, o que a liderança chinesa viu como “a morte do prestígio global dos EUA”. Acrescente-se que o voto dos britânicos de deixar a União Europeia e a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos fortaleceram o consenso na cúpula chinesa de que os Estados Unidos, e o Ocidente em geral, estavam em declínio.

Será?

Tal cenário sugeriria à elite política que a China poderia optar por uma paciência estratégica e simplesmente aguardar que o poder americano se reduzisse. Mas a renovação da liderança dos EUA provocada pelo advento do governo Biden, com valores e ativismo ideológicos definidos, deixa sugerir que Pequim não está disposta a “esperar para ver quanto tempo a fase do declínio ocidental vai durar”. A crescente assertividade dos chineses no leste e sudeste da Ásia, e em todo o planeta parecem corroborar este julgamento. Mas suas ações até agora parecem cada vez mais com aquelas em um mundo de coexistência competitiva um pouco mais ousado do que a “coexistência pacífica” que o líder soviético Nikita Khrushchev cunhou para caracterizar a velha “Guerra Fria”.

O “alvo” imediato desta confrontação parece ser Taiwan. Nas últimas semanas ressoaram ecos de um comportamento nesse estilo “Guerra Fria”, com a Força Aérea Chinesa realizando manobras dentro da “zona de identificação aérea” de Taiwan, incentivando declarações “beligerantes” de Joe Biden em defesa da Ilha, aliás no cumprimento dos termos do “Taiwan Relations Act”, de 1979, quando Washington transferiu a sua diplomacia de Taipé para Pequim.

Mas os chineses têm uma percepção distinta de todo o processo, segundo Yan Xuetong, professor emérito e reitor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Tsinghua, de Pequim: “a China ainda espera poder circunscrever as tensões com Washington ao domínio econômico e evitar uma escalada para confrontos militares. O mais recente “Plano Quinquenal” (2021/5) reitera seu compromisso de buscar a paz e a prosperidade em todo o Estreito de Taiwan, uma política que há muito impede uma potencial guerra EUA-China sobre a Ilha. No entanto, o risco de um conflito a propósito de Taiwan, especialmente, vem aumentando. Embora a China não tenha desistido do princípio da unificação pacífica, ela pode abandoná-lo se Taiwan anunciar sua independência. Quanto mais outros países apoiarem estas políticas secessionistas, mais o Exército de Libertação Popular realizará exercícios militares para deter Taiwan. Não obstante, Pequim espera chegar a um entendimento tácito com Washington de que manter a paz no Estreito de Taiwan é um interesse compartilhado”, afirmou o docente chinês.

Estou convencido de que esta questão – a unidade da China – é ponto inegociável para os chineses do Continente, e talvez o único que possa levar Xi Jinping e a cúpula do ELP a tomarem uma atitude verdadeiramente radical. Tendo em vista o enorme potencial de destruição de um confronto desta magnitude, mais sensato parece a ambos arrefecerem os ânimos e retornarem ao di(tri)álogo que tratei na minha postagem anterior sobre a questão.

Sugiro aos amigos que leiam a matéria do Estadão:

Relatório de inteligência dos EUA diz que China é a maior ameaça para o país e para o mundo – Internacional – Estadão

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.