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O tal do poder (IV): A democracia, a Rússia, a Ucrânia e a “China de que lado está?”

Presidentes da China (Xi Jinping) e Rússia (Putin)

Escolhi o título desta postagem replicando o do artigo de Thomas Friedman, colunista do The New York Times, que o Estadão publicou no dia 08/03. Nele, Friedman assinala que “… a cada dia que passa, a guerra na Ucrânia se torna não apenas uma tragédia cada vez maior para o povo ucraniano, mas também uma ameaça maior para o futuro da Europa e do mundo como um todo. Existe apenas um país que pode ser capaz de impedir a guerra agora – e não são os Estados Unidos”…Continuando, ele pondera que “…se a China anunciasse que, em vez permanecer neutra, está se juntando ao boicote econômico à Rússia – ou até mesmo apenas condenando com firmeza sua invasão não provocada contra a Ucrânia e exigindo que os russos se retirassem do país – isso poderia abalar Vladimir Putin o suficiente para que ele pare…”

…Friedman continua: “…e por que motivo o presidente chinês, Xi Jinping, assumiria tal posição, que aparentemente pareceria minar seu sonho de tomar Taiwan da mesma maneira que Putin está tentando tomar a Ucrânia?… a resposta curta é que as últimas oito décadas de relativa paz entre as grandes potências levaram a um mundo em rápida globalização, que foi crucial para a veloz ascensão econômica da China e a retirada da pobreza de aproximadamente 800 milhões de pessoas desde 1980…”

Será que ele está misturando “alhos com bugalhos” ao correlacionar a postura da RPC a respeito da guerra da Ucrânia com a questão de Taiwan?

Vamos por partes, começando por tentar entender o papel da China na invasão da Ucrânia. Para tanto, é importante relermos o comunicado conjunto que Xi Jinping e Vladimir Putin assinaram durante a visita deste último a Pequim, como hóspede de honra (deferência significativa…) nas Olimpíadas de Inverno, algumas semanas apenas antes da invasão da Ucrânia. Nele os dois líderes afirmam que “…hoje, o mundo está passando por mudanças importantes, e a humanidade está entrando em uma nova era de rápido desenvolvimento e profunda transformação. Assiste ao desenvolvimento de processos e fenômenos como multipolaridade, globalização econômica, advento da sociedade da informação, diversidade cultural, transformação da arquitetura de governança global e ordem mundial. Há crescente inter-relação e interdependência entre os Estados; essa tendência surgiu para a redistribuição do poder no mundo, e a comunidade internacional está revelando demanda crescente por liderança que vise o desenvolvimento pacífico e gradual…”

Continuando a leitura do documento: “…as partes compartilham o entendimento de que a democracia é um valor humano universal em vez de um privilégio de um número limitado de Estados…não há um modelo único para orientar os países no estabelecimento da democracia…uma nação pode escolher as formas e métodos de implementação de democracia que melhor se adequem ao seu momento particular, com base em seu sistema social e político, sua história, tradições e características culturais únicas. Cabe tão somente ao povo do país decidir se seu Estado é democrático… os cidadãos de ambos os países estão certos da sua escolha e respeitam os sistemas democráticos e tradições dos outros Estados”…

Prosseguindo a leitura: “…as tentativas de certos Estados de impor seus próprios padrões democráticos a outros países, monopolizar o direito de avaliar o nível de cumprimento dos critérios democráticos, traçar linhas divisórias baseadas em fundamentos de ideologia, estabelecendo blocos exclusivos e alianças de conveniência ( leia-se OTAN… ), provam não ser nada além de desrespeito à democracia e contrários ao espírito e aos seus verdadeiros valores. Tais tentativas de hegemonia representam sérias ameaças à paz e estabilidade globais e regionais, e minam a estabilidade da ordem mundial”;

E mais adiante: “…as partes acreditam que certos Estados, alianças militares e políticas e coalizões buscam obter, direta ou indiretamente, vantagens militares unilaterais em detrimento da segurança de outros… AS PARTES SE OPÕEM A UMA NOVA EXPANSÃO DA OTAN (maiúscula minha) e pedem à Aliança que abandone suas abordagens ideológicas de Guerra Fria, respeite a soberania, a segurança e os interesses de outros países, a diversidade de suas origens civilizacionais, culturais e históricas, e mantenha uma atitude justa e objetiva em relação ao desenvolvimento pacífico de outros Estados…” Esta foi a posição oficial da China a respeito da expansão da OTAN, num documento firmado no mais alto nível político.

Questionamento semântico politicamente motivado de líderes autocratas do conceito de democracia, ou contraposição à percepção monolítica que o Ocidente central do que seja “democracia”? Em definitivo, latino-americanos, europeus, muçulmanos, africanos, asiáticos, etc., compartilham absolutamente idênticos valores quando se referem à “democracia”? É isto o que o comunicado contesta…dilema profundo…

No que diz respeito a Taiwan e ao Mar do Sul da China, o comunicado assinala que “…as partes se posicionam contra a formação de estruturas fechadas de bloco e campos opostos na região Ásia-Pacífico e permanecem altamente vigilantes com relação ao impacto negativo da estratégia Indo-Pacífico dos Estados Unidos… ” Resumindo, uma demonstração inequívoca do apoio de Moscou a uma questão fundamental para Pequim.

Como se sabe, para o governo chinês a questão de Taiwan é “sagrada” e inegociável. Ousaria dizer que é o único tema que levaria a República Popular a uma guerra externa. Entendi isto quando servi tanto na China continental quanto em Taiwan. Por isto mesmo, percebo, preocupado, que o tema tem sido levantado com maior frequência desde que Joe Biden assumiu o governo nos Estados Unidos após anos de estratégico “low profile” sobre o tema. Para mim, este ativismo, que procura dar roupagem “ideológica” ao litígio, é uma forma de consolidar o Ocidente central como o verdadeiro guardião da democracia, e da OTAN como a sua guardiã. Este é o pano de fundo deste trecho do comunicado conjunto sino-russo.

Só que… diante do acirramento dos confrontos na Ucrânia, a República Popular sentiu-se compelida a matizar, de público, pelo menos, a sua sintonia com Moscou e absteve-se na votação da Resolução da Assembleia Geral da ONU cujo texto está assim redigido: “the General Assembly…deplores in the strongest terms the aggression by the Russian Federation against Ukraine in violation of Article 2 (4) of the Charter” (sic). Não “condena”…

Os chineses sabem que eles são o último recurso dos russos quando (e se) o mercado e as finanças internacionais estiverem totalmente fechados para Moscou. Eles têm fundos financeiros e demanda interna suficientes para substituir o Ocidente, mesmo que temporária e não totalmente. E os russos contam com isto, à luz da leitura dos acordos “preventivos” firmados nas Olimpíadas e a ousadia das ações de guerra determinadas por Putin.

Estaria se formalizando uma dependência real da Rússia com relação à China? Quanto tempo duraria? Estaríamos diante de um novo paradigma: Ocidente + OTAN X Rússia + China? E o restante da Ásia, para onde se bandearia?… E, mais tragicamente, para onde irão os refugiados ucranianos, à deriva pelo mundo afora?…Geopolítica X Vidas Humanas: Bravo Mundo Novo…

To be continued.

Sugiro aos amigos que leiam o artigo do Thomas Friedman

https://internacional.estadao.com.br/noticias/europa,querida-china-de-que-lado-voce-esta,70004000220?

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.