
A mudança climática já não é apenas uma emergência ambiental. Ela tornou-se um eixo estratégico que reorganiza as hierarquias de poder no sistema internacional. O que antes era tratado como tema técnico de conferências climáticas agora se impõe como campo de disputa entre Estados, empresas, blocos regionais e visões de mundo concorrentes. A transição energética e ecológica, longe de ser consenso, é palco de conflitos distributivos, negociações tensas e tentativas de reconfiguração da ordem global. No centro desse processo estão a corrida por minerais críticos, a reindustrialização verde, os impasses entre Norte e Sul sobre financiamento climático e perdas & danos, além da emergência de novas geografias políticas em torno da energia limpa.
A corrida por minerais críticos — como lítio, cobalto, níquel, grafite e terras raras — ilustra de forma emblemática como a transição energética amplia rivalidades geopolíticas. Esses recursos são indispensáveis para a produção de baterias, turbinas eólicas e painéis solares. No entanto, estão concentrados em poucas regiões, como República Democrática do Congo, Bolívia, Chile, Indonésia e China. O controle sobre a extração, refino e comercialização desses minerais tornou-se questão de segurança nacional para diversas potências. Os Estados Unidos e a União Europeia passaram a tratar o acesso a esses insumos como prioridade estratégica, enquanto a China, que detém posições dominantes nas cadeias de refino, consolida sua influência por meio de investimentos e acordos bilaterais.
Esse novo ciclo de exploração mineral não apenas desloca o eixo do poder econômico, mas também reproduz velhas assimetrias. Países do Sul Global, ricos em recursos, frequentemente enfrentam dilemas entre atrair investimentos e proteger comunidades locais e ecossistemas frágeis. O Peru vive tensões constantes entre comunidades indígenas e empresas mineradoras. Na Indonésia, o governo restringiu a exportação de níquel bruto para fomentar industrialização local, desafiando interesses de potências ocidentais. Essa disputa por soberania sobre os recursos da transição energética reacende um debate sobre colonialismo verde, no qual países ricos buscam garantir acesso a matérias-primas sem arcar com os impactos sociais e ambientais da extração.
A reindustrialização verde é outro vetor de reordenação global. Em resposta à dependência da China e ao colapso das cadeias produtivas durante a pandemia, países desenvolvidos lançaram pacotes massivos de subsídios para atrair investimentos em tecnologias limpas. O Inflation Reduction Act dos EUA e o Green Deal Industrial Plan da União Europeia exemplificam essa estratégia. No entanto, ao promoverem protecionismo climático, essas políticas geram atritos com países em desenvolvimento, que acusam o Ocidente de criar barreiras comerciais disfarçadas de compromissos ambientais. Ao mesmo tempo, potências emergentes como Índia, Brasil e África do Sul buscam protagonismo na produção de energias renováveis, com programas que combinam objetivos de sustentabilidade com estratégias de crescimento e autonomia industrial.
No plano diplomático, o ponto mais sensível da transição climática está na histórica clivagem entre Norte e Sul sobre financiamento e responsabilidade. Países em desenvolvimento, especialmente da África, América Latina e Sudeste Asiático, demandam apoio financeiro e tecnológico para adaptar-se às mudanças climáticas e promover uma transição justa. Em fóruns como a COP e o G77, esses países reivindicam compensações por perdas e danos — termo que remete aos impactos irreversíveis causados por eventos climáticos extremos. A criação do fundo de perdas e danos em conferências recentes foi um marco político, mas a ausência de compromissos vinculantes e os valores insuficientes anunciados mantêm o impasse. Para muitos países do Sul, a transição verde proposta pelas potências soa como imposição assimétrica: exigem-se metas e reformas sem a devida transferência de recursos.
Blocos regionais assumem crescente protagonismo nessa nova ecologia política. A União Europeia tenta liderar a governança climática com suas metas ambiciosas e regulações extraterritoriais, como o mecanismo de ajuste de carbono nas fronteiras. A China propõe uma transição energética com características próprias, enfatizando soberania tecnológica e desenvolvimento em seus termos. A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), por sua vez, resiste a metas de neutralidade carbônica que prejudiquem seus membros. Já a União Africana e a Celac articulam posições comuns em defesa da justiça climática, demandando maior voz nos fóruns globais e acesso preferencial a financiamento verde.
A disputa climática também envolve a construção de futuros. O modo como diferentes países narram a transição energética revela projetos concorrentes de sociedade. Para os países centrais, a descarbonização é oportunidade de reposicionar suas economias em novas cadeias de valor e garantir hegemonia tecnológica. Para grande parte do Sul Global, trata-se de uma encruzilhada: aderir à transição sob termos alheios ou redefini-la com base em seus próprios interesses, incluindo inclusão social, erradicação da pobreza e soberania sobre recursos naturais. Essa tensão é evidente nos planos de hidrogênio verde no Marrocos, nas disputas sobre o petróleo na África Ocidental, nos projetos solares no deserto da Índia e na busca por biocombustíveis no Brasil.
Ao contrário da retórica dominante, a transição climática não é neutra nem consensual. Ela é um terreno de negociação, conflito e tentativa de pactos. Suas promessas de um mundo mais limpo e resiliente convivem com interesses assimétricos, desigualdades persistentes e lutas por reconhecimento e poder. Com isso, o desafio global não é apenas técnico, mas profundamente político: como construir uma transição ecológica que seja, ao mesmo tempo, eficaz do ponto de vista ambiental e justa do ponto de vista social e geopolítico.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
