
A política global de energia nuclear tornou-se mais do que uma disputa por mercados e tecnologia: ela passou a ser um campo de batalha estratégico, no qual Estados Unidos e China lutam por hegemonia e limitam ativamente o desenvolvimento atômico de outros países. Essa confrontação geopolítica se desdobra não apenas em disputas corporativas e acordos bilaterais, mas também na forma como diferentes nações se posicionam frente à Rússia, sobretudo após a guerra na Ucrânia e o aumento das tensões energéticas internacionais.
China e Estados Unidos estão investindo fortemente para dominar o mercado nuclear global, buscando estabelecer padrões, firmar contratos de longo prazo e assegurar dependência tecnológica de outros países. A China, com a China National Nuclear Corporation (CNNC) e o avanço de reatores como o Hualong One, acelera a exportação de sua tecnologia nuclear para países da África, Ásia Central e Oriente Médio. A estratégia chinesa é pragmática: além de construir os reatores, Pequim oferece financiamento e cooperação técnica, consolidando sua presença em regiões onde a infraestrutura energética ainda está em desenvolvimento.
Do outro lado, os Estados Unidos avançam com empresas como a Westinghouse, que busca contratos estratégicos na Europa e na América Latina. O país também patrocina acordos de cooperação com nações aliadas, promovendo uma nova geração de reatores modulares (SMRs), como os desenvolvidos pela TerraPower — apoiada por Bill Gates — e pela NuScale Power. Essas iniciativas são frequentemente acompanhadas de pressões políticas para limitar a cooperação nuclear entre países emergentes e a China ou a Rússia, em nome da segurança internacional.
A partir dessa disputa entre os dois maiores blocos de poder do planeta, países que anteriormente buscavam desenvolver sua própria indústria nuclear encontram-se pressionados a escolher lados. Essa polarização afeta diretamente a relação de diversas nações com a Rússia, tradicional fornecedora de tecnologia e combustível nuclear para dezenas de países, especialmente na Europa Oriental, Ásia Central e África.
A estatal russa Rosatom mantém contratos com mais de trinta países e fornece não apenas reatores, mas também urânio enriquecido e apoio técnico. No entanto, após a invasão da Ucrânia, os Estados Unidos e seus aliados passaram a pressionar para que esses contratos fossem suspensos, sob o argumento de que o financiamento à Rosatom indiretamente alimenta a máquina de guerra russa. A Hungria, por exemplo, tem resistido a esse movimento e mantém a construção de uma usina nuclear com apoio russo em Paks, desafiando as diretrizes da União Europeia.
Em contrapartida, países como Polônia e República Tcheca passaram a buscar acordos com empresas americanas, alinhando-se à política de diversificação energética do Ocidente. Já na África, muitos governos continuam firmando parcerias com a Rosatom, atraídos pelo modelo russo de financiamento a longo prazo e pelo histórico de não condicionar a cooperação a exigências políticas.
Nesse cenário, o programa nuclear se torna um instrumento de diplomacia. Países que escolhem parceiros americanos ou chineses enviam sinais de alinhamento estratégico mais amplos, enquanto os que mantêm laços com Moscou enfrentam sanções, pressões multilaterais e dificuldades de financiamento. A decisão sobre com quem construir um reator nuclear, portanto, extrapola o campo energético e define posições políticas mais amplas.
A crescente militarização das políticas nucleares e a transformação das cadeias de suprimento em arenas de competição estratégica limitam a autonomia de países em desenvolvimento. Sem margem para neutralidade, essas nações se veem obrigadas a navegar por um campo minado de interesses geopolíticos, onde qualquer escolha tecnológica pode implicar consequências diplomáticas.
O domínio do setor nuclear tornou-se, portanto, não apenas uma questão de segurança energética, mas também de arquitetura global de poder. China e Estados Unidos tentam redesenhar o mapa da cooperação atômica global, atacando os avanços de terceiros, incluindo Rússia, mas também Índia, Irã e Brasil, sempre em nome de justificativas como proliferação, segurança ou estabilidade. Na prática, o que está em jogo é quem irá controlar os próximos cinquenta anos de desenvolvimento energético e tecnológico do planeta. E, nesse tabuleiro, poucos países têm liberdade para jogar por conta própria.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X