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A guerra dos alimentos e fertilizantes: como as cadeias agrícolas revelam a interdependência global

Em um mundo cada vez mais integrado, a segurança alimentar deixou de ser apenas uma questão de produção local para se tornar uma peça central na engrenagem do comércio global. As cadeias agrícolas internacionais, que conectam plantações no Brasil, jazidas de potássio na Rússia, portos na China e silos nos Estados Unidos, formam uma teia complexa e interdependente que garante o abastecimento de bilhões de pessoas. No entanto, quando essa engrenagem sofre choques — seja por guerras, sanções ou disputas geopolíticas — os efeitos são imediatos, difusos e, muitas vezes, devastadores. Grãos e fertilizantes, dois pilares da produção agrícola moderna, estão no centro dessas turbulências e ilustram com clareza os desafios e interesses ocultos que marcam a geopolítica contemporânea.

A pandemia de covid-19 já havia exposto a fragilidade das cadeias globais, com disrupções logísticas, aumento do protecionismo e escassez de insumos. Mas foi a guerra na Ucrânia, em 2022, que escancarou o grau de dependência mútua entre os países em relação à produção agrícola e seus insumos estratégicos. Rússia e Ucrânia, juntos, são responsáveis por cerca de 30% das exportações globais de trigo, além de ocuparem papéis centrais no mercado de milho, cevada e óleo de girassol. Quando o conflito eclodiu, os embarques foram interrompidos, os preços dispararam, e países do Oriente Médio e da África enfrentaram escassez alimentar, revelando a vulnerabilidade das regiões mais pobres às flutuações geopolíticas distantes.

Além dos grãos, os fertilizantes tornaram-se um dos produtos mais sensíveis da nova geopolítica global. A Rússia é uma das maiores exportadoras mundiais de potássio, fosfato e nitrogênio — três nutrientes essenciais para a produtividade das lavouras. Belarus, aliado russo e também alvo de sanções ocidentais, possui enormes reservas de potássio. Com o início das sanções contra Moscou e Minsk, o fornecimento global desses fertilizantes sofreu um forte abalo. O Brasil, por exemplo, que é uma das maiores potências agrícolas do planeta, importa mais de 80% dos fertilizantes que utiliza — e a Rússia está entre seus principais fornecedores. Quando o comércio com os russos foi impactado, os produtores brasileiros enfrentaram escassez e aumento de custos, colocando em risco a próxima safra e, por consequência, a oferta global de alimentos.

Essa interdependência gera um paradoxo: países que impõem sanções buscando isolar economicamente seus adversários acabam também penalizando seus próprios setores produtivos. Os efeitos não são apenas econômicos, mas políticos. No Peru e no Sri Lanka, a escassez de fertilizantes gerou protestos populares e contribuiu para a instabilidade dos governos. No Egito e no Líbano, a dependência de trigo ucraniano se converteu em um problema de segurança alimentar, levando a subsídios emergenciais e tensões sociais.

A Ásia também demonstra como essas cadeias são integradas e sensíveis. A China, por exemplo, é uma potência agrícola e também um grande produtor de fertilizantes. No entanto, diante da escassez global, Pequim impôs restrições às exportações de ureia e fosfato para garantir o abastecimento interno. Essa decisão impactou especialmente países do Sudeste Asiático e do sul da Ásia, como Índia e Bangladesh, que dependem dos produtos chineses. A medida mostra como mesmo grandes potências tendem ao protecionismo em momentos de crise, o que só aprofunda os gargalos do sistema.

O sistema agrícola global também revela a existência de zonas estratégicas de vulnerabilidade. O Mar Negro, por exemplo, tornou-se um ponto de tensão geopolítica ao mesmo tempo em que é rota fundamental para o escoamento de grãos ucranianos e russos. O bloqueio temporário dos portos de Odessa, e os ataques a navios civis, afetaram diretamente os estoques e os preços internacionais. Da mesma forma, o fechamento temporário do Canal de Suez, ainda em 2021, mostrou que o comércio agrícola depende de rotas comerciais seguras, e que gargalos logísticos podem ter efeitos em cascata.

Embora as sanções tenham como objetivo enfraquecer economicamente regimes considerados hostis, como o russo, elas frequentemente revelam algo mais profundo: a existência de interesses comerciais estratégicos que moldam as decisões políticas. O setor agrícola, vital para todos os países, torna-se então não apenas uma vítima, mas também uma alavanca de pressão. Ao restringir fertilizantes russos ou grãos ucranianos, não se atinge apenas os alvos diretos — afeta-se também a estabilidade alimentar de dezenas de nações e o equilíbrio político de regiões inteiras.

Diante dessa realidade, crescem os debates sobre a necessidade de “soberania agrícola”, diversificação de fornecedores e investimento em produção doméstica de insumos. No entanto, num sistema tão interligado, essas estratégias são limitadas e, em muitos casos, economicamente inviáveis. A produção de potássio, por exemplo, exige acesso a jazidas específicas, que estão concentradas em poucos países — Rússia, Belarus, Canadá e Marrocos. O Brasil tenta expandir sua exploração no Amazonas, mas enfrenta entraves ambientais e logísticos. Já a Índia, mesmo sendo um país com forte setor agrícola, depende fortemente de importações para manter sua produção.

A cadeia global agrícola é, portanto, uma arena onde se cruzam interesses econômicos, políticas de segurança nacional e disputas estratégicas. A interdependência que a define é, ao mesmo tempo, sua força e sua fraqueza. Em um mundo marcado por rivalidades e tensões crescentes, garantir o funcionamento dessas cadeias passa a ser não apenas uma questão comercial, mas um imperativo político e geopolítico. Grãos e fertilizantes, longe de serem apenas commodities, tornaram-se armas silenciosas e instrumentos de barganha em um cenário global cada vez mais competitivo e instável.

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