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Entre promessas e ameaças: o impacto do discurso de Netanyahu na ONU

A presença de Benjamin Netanyahu na Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro de 2025 não foi apenas mais uma fala de chefe de Estado num fórum internacional. Foi, para muitos observadores, a tentativa de reafirmar a centralidade da narrativa israelense no conflito com os palestinos num momento em que o equilíbrio simbólico e diplomático começa a se deslocar. Mas também foi, para outros, uma evidência do isolamento crescente de Israel diante de um mundo que, embora dividido, já não acata sem reservas os termos colocados por Tel Aviv. O discurso provocou reações distintas entre países, evidenciando que a disputa entre Israel e Palestina não é apenas territorial ou militar: ela se dá também no campo das versões, dos afetos e das leituras históricas.

A fala de Netanyahu veio poucos dias após Reino Unido, Austrália e Canadá reconhecerem formalmente o Estado da Palestina, o que gerou desconforto diplomático em Israel. O primeiro-ministro israelense classificou essas ações como “um prêmio ao terror” e afirmou que o momento exigia que o mundo apoiasse Israel “sem vacilações” diante daquilo que chamou de “ameaça existencial representada por grupos extremistas que operam em Gaza e recebem apoio externo”. Para Netanyahu, o reconhecimento unilateral do Estado palestino violaria compromissos prévios de negociações bilaterais e, segundo suas palavras, “recompensaria décadas de violência e recusa em reconhecer o direito de Israel existir”.

Durante o discurso, Netanyahu também reiterou que “não haverá Estado palestino a oeste do rio Jordão”, o que, em termos práticos, significa o fim da ideia de partilha territorial com base nas fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias, em 1967. Essa rejeição explícita ao princípio da solução de dois Estados, que há décadas serve como base para resoluções da ONU e propostas de paz patrocinadas por diversos países, provocou forte reação de vários membros da comunidade internacional.

Na região árabe e no mundo islâmico, a fala foi vista como provocativa. Um bloco de 31 países, liderado pela Arábia Saudita, publicou nota conjunta classificando o discurso como uma “ameaça aberta à autodeterminação do povo palestino” e um “desrespeito flagrante ao direito internacional”. Na mesma linha, a Organização para a Cooperação Islâmica (OCI) afirmou que Israel tem utilizado o argumento da segurança para justificar a ocupação prolongada e o bloqueio de Gaza, transformando o cotidiano palestino em uma sucessão de emergências humanitárias.

Por outro lado, alguns aliados históricos de Israel mantiveram um apoio mais moderado, equilibrando a reafirmação do direito israelense à autodefesa com críticas às consequências humanitárias da ofensiva em Gaza, que em 2025 já contabilizava mais de 30 mil mortos e um sistema de saúde colapsado. França, Alemanha e Espanha pediram cessar-fogo imediato, investigações independentes sobre abusos e retomada de negociações com base em parâmetros internacionalmente reconhecidos. Contudo, evitaram usar termos como “apartheid” ou “genocídio”, comumente invocados por críticos mais contundentes da política israelense.

Enquanto isso, em países da América Latina e da África, o discurso de Netanyahu foi amplamente rejeitado. Na América do Sul, Argentina, Chile, Bolívia e Colômbia emitiram comunicados separados criticando o que consideraram uma “postura de negação do direito palestino à soberania” e pedindo uma investigação das ações militares israelenses em Gaza por parte da Corte Penal Internacional. Na África, África do Sul, Namíbia e Argélia lideraram críticas à “naturalização da ocupação e da punição coletiva”, posicionando-se ao lado da Palestina nos fóruns multilaterais.

Mas não se trata apenas de um embate entre Israel e seus críticos. A questão palestina, há muito tempo, funciona como um espelho da política internacional. Enquanto os Estados Unidos continuam sendo o principal fiador político e militar de Israel — o governo Trump, em seu segundo mandato, aumentou significativamente o volume de ajuda militar e vetou resoluções contra Tel Aviv no Conselho de Segurança —, outras potências tentam se reposicionar. A China e a Rússia têm feito movimentos simbólicos em favor da causa palestina, mas comedidos, evitando compromissos formais. A União Europeia, por sua vez, está dividida: entre o reconhecimento do Estado palestino por alguns de seus membros e a neutralidade cautelosa de outros.

É nesse contexto que se multiplicam as versões sobre o conflito. Para o governo israelense, trata-se de uma guerra defensiva contra o terrorismo islâmico radical, financiado por potências hostis. A presença de grupos como Hamas e Jihad Islâmica em Gaza serve como argumento para manter o cerco, justificar operações militares e negar a viabilidade de uma solução de dois Estados. Para essa leitura, o reconhecimento do Estado palestino antes de desmantelar essas organizações é uma concessão equivocada que reforça atores violentos.

Por outro lado, para amplos setores da sociedade civil internacional, de ONGs a grupos acadêmicos e diplomatas de países do Sul Global, a persistência da ocupação, a expansão de assentamentos na Cisjordânia e o bloqueio de Gaza configuram uma política sistemática de violação de direitos humanos. Sob essa ótica, o reconhecimento do Estado palestino não seria um prêmio, mas uma correção tardia de um desequilíbrio histórico. Mais ainda: seria uma tentativa de reequilibrar o tabuleiro político, permitindo aos palestinos negociar em condição de paridade.

A própria ideia de paz tornou-se difusa. Enquanto parte da diplomacia ocidental insiste na solução de dois Estados, setores israelenses e palestinos já a consideram inviável. De um lado, há vozes dentro de Israel que defendem a anexação total da Cisjordânia e o estabelecimento de uma soberania única, mesmo que isso implique o status desigual de milhões de palestinos. De outro, há setores do movimento palestino que rejeitam qualquer acordo com Israel sem o retorno pleno dos refugiados e a desmilitarização completa das forças israelenses nos territórios ocupados.

O discurso de Netanyahu na ONU expôs, mais uma vez, que a disputa entre Israel e Palestina está longe de ser resolvida com frases de efeito ou gestos unilaterais. Trata-se de uma crise complexa, atravessada por narrativas históricas contraditórias, interesses geopolíticos, traumas não resolvidos e um desequilíbrio de poder que dificulta qualquer negociação justa. As reações internacionais mostram que o mundo já não aceita sem contestação o discurso oficial de Israel, mas também revelam que não existe um consenso claro sobre como reverter décadas de violência, ocupação e fracassos diplomáticos.

O palco da ONU evidenciou as fissuras da ordem internacional contemporânea. Em vez de um fórum de consenso, revelou-se mais uma arena de versões incompatíveis, onde o conflito israelense-palestino serve como barômetro de como diferentes países leem justiça, segurança, soberania e memória histórica. No fim, a fala de Netanyahu não apenas falou por Israel — ela também convocou o mundo a tomar posição, ainda que, como vem ocorrendo há décadas, essa tomada de posição continue produzindo mais declarações do que soluções.

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